A Quaresma é um tempo litúrgico da Igreja cercado por alguns mitos e também diversas tradições que, muitas vezes, não são bem compreendidas pelos fiéis. O mais comum é associar erroneamente esse período à tristeza, ao desânimo. Para falar sobre o assunto, o noticias.cancaonova.com entrevistou o especialista em Liturgia e pároco da paróquia São José Operário, na cidade de São Gonçalo, Arquidiocese de Niterói (RJ), padre Marcelo Fróes de Matos.
"Se vivemos bem o tempo da Quaresma, com certeza entenderemos o que significa a Páscoa. Se compreendermos o sentido da Quaresma, vivendo as práticas com intensidade, de coração, com verdadeira devoção, com certeza todos os outros dias serão, para nós, um eterno aleluia!", exclama padre Marcelo.
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Santos e flores
Não é muito difícil encontrar igrejas em que as imagens dos santos, quadros e cruzes são cobertas por panos roxos. Esse é um costume bastante antigo, segundo o qual as cruzes ficam cobertas até o final da liturgia da Sexta-Feira Santa e os quadros e outras imagens até a celebração da noite de Páscoa. "Nosso povo tem um devocionismo muito grande e a Quaresma é um tempo que busca nos ligar inteiramente à conversão, através da dinâmica do tripé oração, jejum e caridade", explica padre Marcelo.
O fundamento desse costume está no luto pelos sofrimentos de Cristo, de tal forma que os fiéis possam contemplar os objetos sagrados cobertos de roxo – que simboliza penitência –, sendo que o despojamento atinge seu cume após a Missa da Ceia do Senhor na Quinta-Feira Santa, quando são retiradas as toalhas do altar.
Quanto às flores, elas são sinal de festa, alegria, vida, ao passo que a Quaresma enfoca-se na kenosis – um verdadeiro esvaziar-se para se encher perfeitamente de Deus. "A Sagrada Liturgia pede que a Igreja revista-se da sobriedade. A Igreja desnuda demonstra aos fiéis que eles vão entrar nesse grande retiro de preparação para a páscoa, um tempo de penitência, de ouvir mais a Cristo, demonstrar que Cristo é nossa força e, nesse percurso, a Igreja está junto com eles", explica o sacerdote.
Jejum, oração e caridade: como viver?
Cerca de 200 anos após o nascimento de Cristo, os cristãos preparavam-se para a Páscoa durante três dias, um dedicado à oração, outro ao jejum e outro à caridade, à esmola. O modelo vivido hoje, de 40 dias de preparação, foi instituído apenas após o ano 350.
– A oração leva o fiel ao encontro de Deus, impulsionando-o a viver plenamente a experiência mística de Cristo, como é exemplificado por tantos santos que viviam em comunhão com Deus através da oração. "É preciso estar mais com Deus, estar mais em contato com o Senhor. Bons meios para isso são: rezar mais o terço; convidar os vizinhos para rezar; fazer grupos de oração, oficinas de oração; promover e participar da via-sacra".
– O jejum não significa ficar o dia inteiro sem comer. "É uma forma de mortificação, não de depressão", lembra padre Marcelo. O fundador da Comunidade Canção Nova, Monsenhor Jonas Abib, explica detalhadamente os vários tipos de jejum. Além dos alimentos, o sacerdote da Arquidiocese de Niterói explica que essa prática também pode ser vivida no sentido de desapego, por exemplo, quando há algo que a pessoa gosta muito de fazer e, durante a Quaresma, oferece para a quebra do próprio coração, para a santificação pessoal e da família, por exemplo;
– A caridade, também denominada como esmola no tripé quaresmal (pois, antigamente, as pessoas saíam às ruas para ajudar os carentes e davam esmolas nas portas da igreja), deve ser vivida a partir de quem está próximo. "É preciso observar quem precisa da nossa ajuda, da nossa colaboração, ação, lembrando que a fé sem obras é morta", diz padre Marcelo.
Cristo Crucificado e Via-Sacra
A veneração de Cristo Crucificado e a prática da Via-Sacra são especialmente ressaltadas no período quaresmal. A Cruz ganha destaque, especialmente com o uso da estola roxa em diversos locais – representa a penitência, mortificação, encontro com Cristo, conversão.
Já a Via-Sacra busca levar as pessoas a viver com intensidade o caminho da cruz, "para que, quando entrar no Tríduo pascal, sobretudo na Sexta-feira santa, entenda-se o real sentido da Paixão do Senhor", ressalta o especialista em Liturgia.
Virgem Maria
Durante a Quaresma, Nossa Senhora é venerada especialmente pelo título de Nossa Senhora das Dores. Como durante todo o restante do ano, Maria auxilia o cristão a viver o seu percurso de fé.
"Maria é sempre a Virgem fiel. Ela demonstra sua fidelidade aos pés da cruz (cf. Jo 19, 25-27), suporta tudo. Muitas vezes, Deus permite que passemos por tribulações para amadurecer nossa esperança. Temos que ser como Maria, que guardava tudo em seu coração. Ela tem papel preponderante neste Tempo como a mulher que leva a refletir os verdadeiros valores do evangelho", diz Fróes.
Outras dicas
Padre Marcelo também oferece uma série de dicas que podem ajudar a melhor celebrar e viver a fé durante o período quaresmal.
– preparar os ambientes com a cor roxa, a cor litúrgica;
– ornamentar a mesa do altar de forma sóbria – a toalha pode ser retirada, de tal forma que o altar seja revestido somente no momento do ofertório, durante a Missa, e, quando termina a Comunhão, dobra-se e retira-se novamente a toalha;
– não se canta nem o Glória nem o Aleluia – são dois hinos de imensa alegria e que são reservados para depois, para a Páscoa, festa, Cristo Ressuscitado;
– os instrumentos musicais devem ser tocados com moderação, apenas para acompanhar os cantos;
– bem rezar o Ato penitencial, destacando o anúncio da misericórdia de Deus;
– Ritualizar bem a Liturgia da Palavra;
– privilegiar cantos que ajudem a viver plenamente o sentido de conversão.