Neuropediatra, psicopedagoga e professora refletem sobre a “adultização” e indicam como reverter este processo que arruína a infância das crianças
Julia Beck
Da Redação

Fotos: Canva
Vestir meninas com roupas que imitam o vestuário adulto – com maquiagens pesadas, calçados com saltos e tops cropped; incentivar o consumo de músicas sensuais e danças eróticas; uma rotina muito estimulada – lotada de atividades; falta de tempo livre para brincar, desenvolver a criatividade e a imaginação; permitir o uso desregrado e sem supervisão de aparelhos de comunicação – com acesso a conteúdos, linguagens e publicidades inadequadas; criar expectativas desproporcionais, que exigem que a criança seja sempre a “melhor”.

A psicopedagoga, Marina Aparecida Caetano Nunes/ Foto: Arquivo Pessoal
As ações listadas acima pela psicopedagoga Marina Aparecida Caetano Nunes reúnem comportamentos aparentemente inofensivos, mas que podem favorecer a adultização das crianças e comprometer o desenvolvimento saudável das mesmas.
“Todas essas práticas substituem a experimentação livre e despretensiosa da infância por uma exibição, onde a criança precisa agradar e corresponder a um ideal adulto, e não apenas ser ‘criança’”, frisa a profissional.
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O alerta ganhou força diante da mobilização que tomou conta do país neste mês de agosto, com a popularização do tema “adultização”. A professora de educação infantil, Beatriz Gonçalves Dias Monteiro, reitera que a “adultização” acontece quando a criança passa a ter atitudes, falas ou jeitos de se vestir que não combinam com a sua idade.
Beatriz acrescenta mais um comportamento à lista de Marina: a inclusão de crianças em conversas que não são adequadas, com a exposição de informações que chegam “antes da hora” e acabam gerando confusão. “Isso faz com que elas vivam coisas antes da hora e acabem deixando de aproveitar fases importantes da infância”, complementa.
Impactos neurológicos
A infância é o único período da vida que não se prolonga, pontua a neuropediatra Laura Viscardi. A médica explica que quando esse processo é antecipado, obrigando a criança a assumir responsabilidades, comportamentos ou padrões estéticos próprios da vida adulta, etapas essenciais do desenvolvimento são interrompidas.

A neuropediatra, Laura Viscardi /Foto: Arquivo Pessoal
“Do ponto de vista neurológico, isso significa sobrecarregar sistemas cerebrais ainda em formação, principalmente aqueles ligados ao controle emocional e ao aprendizado”. Laura relata que exposições precoces e intensas podem levar ao chamado estresse tóxico, que altera a forma como o cérebro amadurece.
“O córtex pré-frontal – área responsável por planejamento, autocontrole e tomada de decisão – é altamente vulnerável, e seu desenvolvimento prolonga-se até a adolescência tardia. Quando pressionamos uma criança a viver como adulta, aumentamos o risco de dificuldades de atenção, ansiedade, alterações de sono, impulsividade e até maior vulnerabilidade a transtornos psiquiátricos no futuro”, esclarece.
A neuropediatra acrescenta que os circuitos que conectam o córtex pré-frontal à amígdala (responsável pelo processamento emocional) e ao hipocampo (memória) podem também ser impactados. Segundo ela, estudos mostram que a exposição precoce a adversidades pode até acelerar inicialmente a maturação dessas áreas, mas depois provocar redução de volume e conectividade, prejudicando memória, regulação emocional e autocontrole. “Na prática, isso se traduz em maior impulsividade, dificuldade em lidar com frustrações e risco aumentado para ansiedade e depressão”.
Identidade infantil
A psicopedagoga afirma que a pressão estética, a erotização precoce e a exposição intensa às redes sociais levam as crianças a entenderem que seu valor está intimamente ligado à sua aparência e suas ações são medidas por “likes” e “comentários”.
“Essas três formas são um trio perigoso que descontrói e ataca a formação da identidade infantil. A identidade infantil é construída a partir das experiências da criança no convívio com o outro, sendo assim ela necessita de experiências positivas que ajudem em sua formação”, enfatiza Marina.
Evidências de neuroimagem e estudos longitudinais indicam que o uso excessivo de telas está associado à menor integridade da substância branca em áreas cerebrais envolvidas em linguagem, funções executivas e processamento multimodal, sugerindo atraso ou subdesenvolvimento dessas redes neurais durante períodos críticos do desenvolvimento, pontua a neuropediatra.
“O consumo de conteúdo não direcionado ao público infantil, especialmente com elementos violentos ou sexualizados, está associado tanto a problemas de comportamento externalizantes (como impulsividade e agressividade) como um maior risco de internalização de sintomas, como ansiedade e depressão. Esses efeitos são potencializados pela alta plasticidade cerebral na primeira infância, período em que as redes responsáveis pela regulação emocional e autocontrole estão em rápida maturação”, explica a médica.

A professora de educação infantil, Beatriz Gonçalves Dias Monteiro /Foto: Arquivo Pessoal
Beatriz frisa que estes fatores também fragilizam a formação moral e espiritual dos pequenos. “Muitas vezes eles absorvem valores que não fortalecem sua fé e nem os seus princípios. Por isso, é fundamental que os adultos tenham um olhar atento e consciente, a infância é tempo de raízes, não de incertezas. Se não houver cuidado agora, os reflexos lá na frente podem ser muito mais difíceis de reverter”, alerta a professora.
Percepção dos adultos
Os sinais da adultização podem ser percebidos quando a criança tenta resolver problemas que não são compatíveis com sua idade, usa linguagens e expressões que não correspondem à sua fase, escolhe roupas ou acessórios que a fazem parecer mais velha e até mesmo a forma de brincar, reflete um contexto além do que deveria viver, afirma Beatriz.
No desenvolvimento da aprendizagem, Marina revela que é possível perceber esta adultização quando a criança apresenta dificuldade de atenção e memorização de conteúdos, alterações regressivas (falar como bebê, fazer xixi na cama ou na roupa) e psicossomáticas (dores de barriga ou de cabeça frequentes sem causa médica clara, dificuldades para dormir, pesadelos e alterações no apetite).
Laura acrescenta que além das alterações de humor, como irritabilidade frequente, frustração fácil, crises de choro ou anedonia (falta de prazer nas atividades); é perceptível alterações no padrão do sono: despertares frequentes, dificuldade de iniciar o sono. Ela cita também comportamentos precoces, como falas ou brincadeiras com conteúdo sexualizado, vaidade excessiva com aparência, preocupação exagerada com desempenho ou imagem; além de mudanças sociais: retraimento, isolamento, queda no interesse por brincar com pares da mesma idade.
“Esses sinais devem sempre ser analisados no contexto do desenvolvimento global da criança, mas podem indicar que ela está vivendo pressões acima de sua capacidade emocional e cognitiva. Quando a criança deixa de brincar, dorme mal, preocupa-se em ser perfeita, em agradar ou em parecer adulta, isso pode ser sinal de que está vivendo uma etapa que não lhe pertence”, observa a neuropediatra.
A psicopedagoga ressalta a importância da atenção dos pais e responsáveis. “O mais importante é a observação atenta e a intimidade emocional. Conhecer o ‘normal’ do seu filho é a melhor ferramenta para perceber quando algo está inadequado”.
Como reverter a adultização?
Para reverter esse processo, Beatriz comenta que os pais precisam rever atitudes, impor limites saudáveis e oferecer um ambiente de segurança e afeto. “A criança precisa ser criança: brincar, errar, aprender e viver cada etapa no seu tempo. Esse caminho pede paciência, firmeza e constância dos adultos, mas os frutos serão uma infância mais leve e um desenvolvimento mais saudável”.
Além de garantir bons hábitos básicos — como uma rotina adequada de sono, alimentação balanceada e prática de atividade física, a neuropediatra adverte ser fundamental que os adultos estejam atentos ao uso de telas. Isso significa não apenas limitar o tempo de exposição, mas, sobretudo, supervisionar o conteúdo que é consumido.
“As redes sociais, por exemplo, só são permitidas legalmente a partir dos 13 anos e, mesmo nessa faixa etária, devem ser utilizadas com acompanhamento próximo da família”, destaca Laura. Além disso, ela acredita ser essencial evitar cair nas pressões estéticas, sociais e cognitivas que muitas vezes a sociedade impõe às crianças. “A família deve ser um porto seguro, onde a infância possa ser vivida sem julgamentos”.
União pela proteção dos menores
É necessário um verdadeiro olhar para as etapas da infância, acredita a psicopedagoga Marina. Neste processo, ela enfatiza que cada um tem o seu papel:
“A família é o porto seguro (seu papel é oferecer um ambiente integral, onde a criança é amada pelo o que ela é, e não pelo que produz ou como se veste), a escola deve ser um espaço de desenvolvimento integral e não apenas acadêmico (onde a criança possa vivenciar valores humanos), os meios de comunicação têm como responsabilidade social noticiarem conteúdos coerentes e éticos, e a igreja pode atuar como rede de apoio às famílias (promovendo valores de fraternidade)”.
A professora Beatriz recorda a necessidade de se reconhecer que a criança é o futuro e que merece viver cada fase com respeito e cuidado. Deste modo, a neuropediatra Laura frisa que a infância é a fase da descoberta e dos erros, sem os quais não se formam adultos saudáveis e funcionais. “Além disso, e por fim, como escreveu a autora francesa Anne Barratin, ‘a infância é um terreno que pisamos a vida toda’ – por isso precisamos protegê-la e vivê-la por completo”, finalizou a médica.