Assessor da Cáritas Brasileira e membro da Coordenação do Movimento Nacional da População de Rua comentam vulnerabilidade de quem não tem moradia
Da redação, com CNBB
“Se as pessoas precisam ficar em casa, qual é a proposta para quem não tem casa? Acho que é, nessas horas, que a gente precisa rever as ações que estamos implementando e, de fato, dar um passo em direção àquilo que vai sanar o problema, senão, vamos ficar tratando da superficialidade da questão”, aponta Élerson Silva, assessor técnico da Cáritas Brasileira, em Minas Gerais.
Samuel Rodrigues, da Coordenação do Movimento Nacional da População de Rua, destaca a necessidade de ações mais contundentes por parte dos governos e reforça a importância de garantir o isolamento social: “a gente está caminhando para dias mais frios, caminhando para o pico da pandemia no país. O Brasil não tem feito testes suficientes para identificar as pessoas que estão contaminadas, para um país com dimensão continental, o que foi feito até hoje é muito pouco”.
Leia mais
.: “A rua não é lugar para morar, muito menos para morrer”, diz padre
Élerson e Samuel destacam as dificuldades enfrentadas pela população em situação de rua, sobretudo, neste momento de pandemia que reforça a vulnerabilidade de uma parcela da sociedade que não tem moradia.
Élerson Silva é assessor técnico da Cáritas Brasileira, em Minas Gerais, atua diretamente nos serviços voltados para a população em situação de rua executados pela Cáritas em parceria com a prefeitura de Belo Horizonte: dois Centros de Referência da População de Rua (Centro Pop), dois abrigos institucionais para famílias, um para mulheres, e o serviço de emergência e calamidade de acolhimento às pessoas que foram desabrigadas pela chuva.
Samuel Rodrigues é membro da Coordenação do Movimento Nacional da População de Rua, nas ações de Minas Gerais. O Movimento atua em treze estados. Durante a pandemia, vem desenvolvendo ações coletivas, arrecadando e distribuindo doações, realizando trabalhos de conscientização e fazendo incidência política. Confira a entrevista:
Qual o retrato da população de rua hoje, em Belo Horizonte e no cenário nacional?
Samuel: Pensando no cenário nacional, é uma relação ainda de muito medo e desinformação. Muita fala de “isso não pega em nós”, mas as cidades se esvaziaram e a galera está com muito medo e sobrevivendo do fruto do trabalho da sociedade civil que tem se mobilizado em várias capitais, pessoalmente levando comida e água, o mínimo necessário para essa galera. E, na verdade, uma ânsia muito grande de resposta governamental. Então, tem sido um cenário de muito pavor e solidariedade por parte do movimento e das pastorais e associações que têm se juntado para prestar serviço a esse público nessa época de pandemia. Muitos sobreviviam da coleta seletiva e nem isso está tendo.
Élerson: Esse quadro de pandemia só agrava uma situação já existente, que é a situação do descaso com as pessoas que estão em situação de rua. É importante frisar que as pessoas que estão em situação de rua são fruto de um sistema que as descarta e as trata como lixo. Para mudar essa realidade, a gente precisa mudar o sistema e repensar nossa forma de viver. Quando você pergunta como estão as pessoas em situação de rua, seja em Belo Horizonte, Minas Gerais ou em todo Brasil, elas continuam no mesmo estado, sendo descartadas e sem uma ação estrutural para que se resolva o problema.
Em relação à pandemia, quais medidas estão sendo tomadas para proteger funcionários, voluntários, moradores e usuários dos serviços oferecidos?
Samuel: Tenho orientado todos voluntários que chegam a lavar as mãos, colocar luva e máscara, dentro da quadra não pode permanecer sem os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), para ter segurança. A gente vai para a rua e, na volta, já descarta esses EPIs de forma correta, assim que a gente chega tem um saco de lixo, a gente coloca tudo ali. E temos orientado a população de rua, tentando organizar filas, com, pelo menos, um metro de distância de um para o outro, incentivando os companheiros a fazer a higienização das mãos sempre que possível. Então, há um cuidado com essa galera que tem prestado serviço de forma voluntária, e o cuidado para que a gente possa continuar a fazer o que estamos fazendo, sem nos tornarmos um vetor de transmissão do coronavírus.
Élerson: Em consonância com as recomendações dos órgãos de saúde também estamos tomando muito cuidado [com as equipes de trabalho]. A primeira medida que tomamos foi fazer o mapeamento daquelas pessoas que são do grupo de risco. Orientamos para que permaneçam em casa, em quarentena, cuidando de si e cuidando dos seus. Como executamos serviços essenciais, também fizemos um esforço muito grande para adquirir os itens de higiene: máscaras, luvas, sabonetes, álcool em gel, acesso à água. Temos dado orientações, distribuído panfletos e conversado com cada pessoa, porque nós sabemos que um dos agravantes dessa pandemia é o fato de que a maioria das pessoas apresentam sintomas leves ou não apresentam sintomas, então, estamos fazendo um trabalho e um esforço muito grande de conscientização das pessoas para que nós não sejamos vetores de transmissão.
E quando a pessoa apresenta o sintoma? Para a equipe da Cáritas já existe uma orientação, mas e no caso dos usuários dos serviços, quando eles apresentam os sintomas, qual é o encaminhamento?
Élerson: A principal orientação é a de não favorecer aglomerações, então, a fim de proteger os usuários e a equipe, as pessoas que têm acesso ao Centro Pop têm acesso organizado em grupos de 50 pessoas, que procuram resolver suas necessidades, seja banho ou alimentação, e distribuímos também sabonete e água. Para Belo Horizonte, nós temos um serviço que acolhe até 300 pessoas, para onde nós encaminhamos todas as pessoas em situação de rua que apresentam sintomas e necessitam de isolamento. E claro, temos contado com muita parceria da própria Secretaria Municipal de Saúde, que atua, por exemplo, na vacinação contra a gripe, são medidas que amenizam. A Cáritas, embora execute esse serviço com a prefeitura, é parceira do Movimento Nacional da População de Rua e da pastoral, compõe esse grupo da sociedade civil que tem solicitado a ampliação de pontos de higiene na cidade.
Samuel: Bem lembrado pelo Élerson, essa população está na rua, mais vulnerável a esse vírus, porque foi fruto de um descaso de longa data, mas a sociedade civil tem se mobilizado na iniciativa de levar alimentação e coisas emergenciais para essa galera. Então, é preciso alertar que é necessário ir além desse esforço da sociedade civil, por exemplo, em Belo Horizonte, que está acolhendo pessoas com sintomas. Temos que pensar nas pessoas que ainda estão nas ruas e estão à mercê do que está acontecendo.
Tratando-se da pandemia, quais os maiores desafios encontrados ao trabalhar com a população em situação de rua?
Élerson: O grande desafio é a falta de uma política efetiva e estrutural, e para que a gente não fique em cima do muro, é a política de moradia universal para a população em geral com foco na população em situação de rua. Nós só vamos resolver o problema das pessoas que estão em situação de rua se a gente superar essa barreira que existe em relação às políticas de interesse social voltadas para a população de rua. É lógico que a moradia não é a única coisa, você não tira a pessoa da situação de rua sem uma certa estabilidade, e a estabilidade vai ser real quando você tiver uma moradia, não estou falando da defesa da propriedade, mas da moradia. Então, diante da realidade da população em situação de rua, em relação à pandemia soa até uma violência você escutar “fique em casa”. Quando um órgão público desenvolve uma campanha que pede para que as pessoas fiquem em casa, sendo que você tem uma grande parcela de pessoas que nem casa tem, isso é não as levar em consideração, é dizer existe um grupo da sociedade que eu desconsidero. Se as pessoas precisam ficar em casa, qual é a proposta para quem não tem casa? Acho que é, nessas horas, que a gente precisa rever as ações que estamos implementando e, de fato, dar um passo em direção àquilo que vai sanar o problema, senão vamos ficar tratando da superficialidade da questão.
Samuel: A informação chega pouco na rua, e quando chega é picotada. Aí, as pessoas acabam crendo que isso é, de fato, uma gripezinha, um resfriadinho, “isso não pega em nós, porque nós estamos imunes, porque a gente já vive na rua, enfrenta as intempéries climáticas”. Então, a gente tem feito um trabalho nas entregas de alimentação: explicar a letalidade do vírus, instigá-los, inclusive, a pleitear abrigamento, fazer uma pressão para que a rua possa pressionar o Estado a cumprir o mínimo dessa perspectiva de isolamento social. Nas filas de doações, é um desafio muito grande fazer as pessoas se manterem afastadas. Não é para a sorte de ninguém, mas a realidade é que a pandemia entrou pelos aeroportos, ela não entrou pelo mototáxi que vai à comunidade, mas a gente sabe que ela caminha a passos largos e, a qualquer hora, pode atingir a população de rua, os catadores, a população carcerária, e assim, a gente teria uma catástrofe. A população de rua fica, principalmente, nas regiões centrais aglomerada, reunida, juntos na mesma maloca, às vezes, até mesmo no serviço de acolhimento. Então, esse gargalo da informação talvez seja, neste momento, um desafio.
Élerson: Em relação à aquisição de itens de higiene e de equipamentos de segurança de proteção individual, a recomendação é que nós façamos ampla distribuição para que todos tenham acesso, mas se as equipes médicas dos hospitais não estão tendo acesso, você imagina a dificuldade que nós estamos tendo para a aquisição de itens de higiene? Álcool em gel praticamente não existe mais no mercado. Para amenizar um pouco esse impacto, nós fizemos uma parceria com os empreendimentos de costura do Fórum Metropolitano de Economia Solidária aqui da região de Belo Horizonte, então, nós estamos fazendo a aquisição de máscaras de pano, tanto para os trabalhadores, quanto para as pessoas atendidas, já nos antecipando a um possível agravamento da situação, prevista entre meados de abril, indo até maio e junho. Um outro desafio, que vai na direção que Samuel colocou, é em relação à saúde mental das pessoas afetadas pelo medo e pelo pânico que a própria pandemia, junto com o quadro de quarentena e isolamento tem proporcionado.