Um relatório produzido pela Universidade de Brasília (UnB) e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) contém dados surpreendentes sobre o perfil das mulheres que abortam no País. De acordo com o documento “Aborto e saúde pública: 20 anos de pesquisas no Brasil”, esse grupo é formado, em sua maioria, por jovens entre 20 e 29 anos, católicas, com filho, e que tomaram a decisão como forma de planejamento reprodutivo.
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As informações baseiam-se em um levantamento feito com mais de dois mil estudos, artigos e publicações sobre o tema nos últimos 20 anos, e foram organizadas pelas professoras Debora Diniz, da UnB, e Marilena Cordeiro Dias Villela Corrêa, da Uerj. O Ministério da Saúde (MS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) financiaram a pesquisa.
NÚMEROS – Para situar o problema no cenário nacional, uma das primeiras preocupações foi identificar a magnitude do aborto induzido no País. Pesquisas de base populacional utilizando urnas, que protegem a identidade da entrevistada, indicam que pelo menos 3,7 milhões de mulheres entre 15 e 49 anos realizaram aborto. Ou seja, 7,2% das mulheres em idade reprodutiva.
Desse total, menos da metade chega ao Sistema Único de Saúde (SUS). Estudos referentes a 2005 estimam em 1,5 milhão a ocorrência, na rede pública, de curetagens, o procedimento cirúrgico adotado para diagnosticar ou tratar sangramentos uterinos anormais. “Pode-se questionar que nem todas essas mulheres fizeram aborto, mas existe uma subnotificação nesses dados, que não incluem população rural e mulheres usuárias da medicina privada”, afirma Debora, que é antropóloga.
PLANEJAMENTO – Conhecer esse público era um outro desafio do estudo, que questiona os mitos em torno do assunto. O senso comum tende a relacionar o aborto a comportamentos sexuais ocasionais, taxados de promíscuos, mas a pesquisa mostrou que somente 2,5% do total de interrupções de gravidez ocorreram em um contexto de relações eventuais. “Isso muda radicalmente a idéia sobre quem são as mulheres que abortam”, diz a antropóloga. “Ao contrário do que se imagina, essa não é uma solução para a gravidez indesejada de uma mulher que desconheça o sentido da maternidade”, afirma Debora. Na outra ponta, estão aquelas que vivenciam relações estabelecidas, ou seja, possuem um marido, companheiro ou namorado. É esse grupo que responde pela maior parte das interrupções de gestação, com 70% dos casos.
Outro dado relevante mostra que, em termos absolutos, entre 70,8% e 90,5% de quem decide pelo aborto já possui filhos, reforçando a tese de que o ato seria uma medida de planejamento reprodutivo, empregado em último caso, quando todos os outros métodos contraceptivos falharam. Tanto que, de acordo com o relatório, mais de 50% das mulheres que realizaram o procedimento nas regiões Sul e Sudeste usavam algum método anticoncepcional, principalmente pílulas. Já na região Nordeste, a porcentagem das que se preveniram oscila entre 34% e 38,9%.
FAIXA ETÁRIA – Em relação à idade, o relatório mostra que de 51% a 82% dos abortos são realizados por mulheres entre 20 e 29 anos. Ou seja, as adolescentes são minoria, e respondem por 7% a 9% das estatísticas. Há diferentes explicações para os números, segundo a professora: como a taxa reprodutiva entre as jovens é maior, proporcionalmente elas respondem pela maior parte das interrupções. Por outro lado, as adolescentes apresentam menos ocorrências, entre outros motivos, pelas implicações morais mais fortes nessa idade, pela necessidade de negociação familiar e pela dificuldade de acesso a medicamentos abortivos.
A respeito das meninas, estudos qualitativos sugerem que, apesar da baixa prevalência de aborto, entre 60% e 83,7% delas não pretendiam engravidar, e 73% cogitaram a interrupção da gestação, sendo que 12,7% a 40% das garotas tentaram abortar. Entre aquelas que consumaram o ato, 25% voltaram a esperar um filho.
RELIGIÃO – Embora praticamente todas as correntes religiosas condenem o procedimento, a pesquisa indica que nem sempre as crenças impedem sua realização. A maior parte das mulheres que fizeram aborto se declararam católicas, com 51% a 82% de prevalência nos estudos analíticos, seguidas pelas que professam a fé espírita, com 4,5% a 19,2%. Em último lugar estão as evangélicas, com números entre 2,6% e 12,2%.
Para Debora, não há surpresa nas informações, embora a Igreja Católica seja uma das instituições sociais mais atuantes nas campanhas contra a interrupção da gravidez. Na verdade, os números refletem a incidência quase na mesma proporção em que cada crença se manifesta no País. “No Brasil, 72% da população se declara católica. Portanto, esse já era um dado esperado”, afirma.
A antropóloga sugere que a baixa eficiência das leis morais proclamadas pelos diversos grupos, principalmente o católico, estaria ligada ao modo como cada mulher se relaciona com sua comunidade religiosa. “Em situações limite, a religião pode ser um filtro para a decisão. Mas para a massa, que a vê como um meio de conforto, e não como uma cartilha dogmática, ela não é suficiente para as mulheres mudarem sua decisão”, diz.
DEBATE – Diante dos resultados, a pesquisadora aponta duas medidas que considera emergenciais. A primeira, que o debate político sobre o aborto seja fundamentado em evidências científicas e pesquisas acadêmicas. A segunda, que se estimule a pesquisa sobre o tema no País. Na visão de Debora, essas atitudes ajudariam a evitar os abortos clandestinos e os riscos que oferecem para a saúde da mulher. “A ilegalidade é um desafio”, afirma.