Artigo - Frei Moser

Em cima da hora da votação do STF, uma reflexão sobre a vida

Vivemos um momento fascinante da história das ciências e das tecnologias. As primeiras nos revelam, como nunca, as maravilhas da criação; as segundas nos revelam o papel confiado pelo Criador aos seres humanos: o de serem sábios administradores de todas as coisas. Por isto mesmo, ninguém mais do que as pessoas de fé se alegram com as maravilhosas perspectivas que vão se abrindo a cada dia. E justamente estas pessoas de fé têm motivos para se alegrar, uma vez que já ofereceram, continuam e continuarão oferecendo subsídios imprescindíveis para que tanto saber e tanto poder não se voltem contra os seres humanos. Apesar de um reduzido grupo de representantes de um iluminismo tardio caracterizarem a Igreja como “obscurantista”, eles não têm como negar algumas evidências que vão se impondo não só por convicções religiosas, como também por pesquisas científicas que merecem este qualificativo. Voltados narcisisticamente para si próprios, são incapazes de fazer uma leitura mais global e mais profunda da realidade e mormente da complexidade que constitui o ser humano. Podem até entender algo de biogenética, mas seguramente pouco entendem de antropologia.

A primeira destas evidências renegadas pelos representantes do iluminismo tardio é de que pessoas e instituições de caráter religioso não são tão alheias assim ao mundo das ciências. Para constatar isto basta puxar na internet a palavra “cientista” e acrescentar “católico”, ou “cristão”, para se depararem com inúmeros vultos que impulsionaram as ciências. E se esses neo – iluministas se derem ao trabalho de acrescentar outros adjetivos que remetem para outras religiões, ficarão mais surpresos ainda. Como afirmava o insuspeito Einstein, quem julga haver conflito entre religião e ciência, razão e fé, não entende nem de uma nem de outra. E à luz deste pensamento de Einstein se deveria acrescentar: quem se vê obrigado a reivindicar a “laicidade” para justificar todo tipo de experiências, está confessando a fraqueza de seus argumentos em termos científicos.

Se esses pretensos donos da verdade se derem ainda ao trabalho de chamar pelo nome de “Gregor Mendel”, irão descobrir que ele foi monge, continuou monge e no entanto é considerado o pai da moderna biogenética. Fascinado com os mistérios da transmissão de certas características que passam de geração em geração, ele chegou às conhecidas leis da hereditariedade. E foi a partir delas, que, algum tempo depois, começaram a ser feitas perguntas de vital importância para a biogenética: o que são os genes? Onde se localizam os genes? Quais são as funções dos genes? Até que ponto alguns genes podem ser responsáveis por certas anomalias e doenças mais graves?

Na medida em que as pesquisas avançam com seriedade, uma certeza vai se impondo de uma maneira sempre mais evidente: todos nos alegramos com o progresso das ciências e das tecnologias, mas nem as ciências nem as tecnologias são detentoras das chaves para desvendar todos os mistérios da vida e resolver os verdadeiros problemas humanos. A complexidade dos mecanismos que comandam a vida e dos fatores que incidem sobre ela fazem com que os verdadeiros pesquisadores e os verdadeiros cientistas cheguem sempre de novo à mesma antiga e sempre nova conclusão que se resume numa frase atribuída a Sócrates: “sei que nada sei”. Nem hipóteses e nem mesmo teorias não são certezas científicas, no sentido rigoroso do termo: são apenas indícios de que possa haver algo de verdadeiro naquilo que buscamos. Se hipóteses de eventuais curas com células embrionárias fossem certezas, já teríamos evidências em fatos concretos. Apesar de todas as experiências já feitas, até agora os resultados são incipientes e para muitos portadores de deficiências, sobra apenas a ilusão que se projeta num futuro bem distante.

Outra evidência que parece escapar aos representantes do iluminismo tardio é a de que, dada a complexidade de fatores que interferem sobre os mecanismos da vida, nem as doenças nem as curas são processos tão simples como muitas vezes alardeados por marqueteiros ao serviço de interesses econômicos e ideológicos. Qualidade de vida e vida saudável não são resultantes de poções mágicas, mas da interação de fatores múltiplos, e sobretudo, do cuidado que abarca as múltiplas dimensões que caracterizam a vida. Por isto mesmo, atribuir demasiada importância a um destes fatores, como se ele fosse o único responsável, é manifestar uma ignorância inadmissível a qualquer pessoa que vive no século XXI e, ainda mais, que se apresente com ares de pesquisador e cientista. Aqui novamente os discípulos de Mendel trabalham com outros pressupostos: sempre atentos às surpresas que a vida apresenta, têm consciência de que vida saudável, tanto a nível pessoal, quanto social, só pode existir quando são cultivadas todas as dimensões ao mesmo tempo: biológica, física, psíquica, afetiva, espiritual… Os discípulos de Mendel nem sacralizam, nem negligenciam nenhuma destas e de outras muitas dimensões.

Outra evidência esquecida pelos iluministas tardios é a de que nem mesmo os pesquisadores estão isentos de cair em certas tentações. Nem é preciso elencar aqui os sete pecados capitais. Mas certamente convém ressaltar que ciência não se conjuga com arrogância e muito menos com a busca desenfreada de projeção. Ademais convém não esquecer que promessas mirabulantes, além de esconderem muitos interesses escusos, normalmente deixam escancarados grandes interesses econômicos. Afinal, a obtenção de verbas vultosas para pesquisas no campo da biogenética requer que se apresentem resultados imediatos e espalhafatosos. Frutos verdes são vendidos como frutos maduros e montagens com pretensões científicas como aquelas ocorridas há poucos anos não acontecem apenas na Coréia.

Para reforçar as montagens os vendedores de ilusões apelam para dois argumentos que movem multidões: manipulações de estatísticas e apelo ao plano emocional. As vergonhosas condições do SUS são habilmente disfarçadas, enquanto o número de deficientes por razões genéticas são multiplicados ao infinito. Ademais, esses processos de manipulação exigem que se ocultem as causas mais comuns de tantos sofrimentos. Através de uma análise reducionista fatores econômicos, políticos, sociais, psíquicos, afetivos e tantos outros componentes para uma vida saudável se resumem num só princípio: “ E Deus fez mal todas as coisas”. Caberia a alguns iluminados a incumbência de corrigir as falhas originárias da criação e isto numa espécie de passe de mágica.

Ainda outra evidência que os iluministas tardios custam a aceitar é a de que, mesmo em termos de ciências, a verdade sempre acabará triunfando. É assim que, independentemente das intuições religiosas, um sempre maior número de autênticos cientistas e autênticos pesquisadores reconhecem um dado fundamental e inegável: o DNA é um sofisticado programa que, uma vez instalado, passa a comandar os passos sucessivos, que vão configurando as características básicas, únicas, originais e irrepetíveis de cada indivíduo. O DNA é um código que se implanta exatamente no momento da fecundação. Isto é tão verdadeiro que, a partir daquele momento, o corpo da mãe passa a receber ordens para preparar o ninho que irá acolher o embrião. Momentos posteriores como a implantação no útero, a constituição da estrutura básica do cérebro e até o próprio nascimento, são desdobramentos lógicos daquilo que já está implantado no código. Por isto mesmo, as hipóteses de uma humanização postergada não apenas já não se sustentam cientificamente, como manifestam uma ideologia autoritária e perigosa: aquela do direito dos mais fortes de decidirem sobre o destino dos mais fracos. As conseqüências lógicas desta ideologia já se encontram consignadas em projetos de lei ou fazem os primeiros ensaios no sentido de se justificar todo tipo de abortamento e, por que não, também de eutanásia.

Com certeza, nesta altura os leitores já entenderam o sentido do título acima enunciado: “os discípulos de Mengele e os discípulos de Mendel”. Para Mengele, o também denominado “anjo da morte”, o direito às pesquisas não conhece limites. Suas tristemente célebres pesquisas foram complementadas por outras, efetuadas em outras longitudes e latitudes, mas sempre com os mesmos pressupostos ideológicos: já que somos capazes de produzir bombas atômicas e outros sofisticados instrumentos de morte, por que não experimentar seus efeitos detonando-as sobre Hiroshima e Nagasaki, ou então fazendo ensaios em laboratórios para ver no que resulta? Pouco importa quantos milhares de pessoas vão ser detonadas. Afinal, uma vez produzidas, as armas devem ser utilizadas antes que percam seu prazo de validade. Para os discípulos de Mengele tudo o que é tecnicamente possível já é automaticamente justificável também de um ponto de vista ético. Assim, mecanizar a transmissão da vida humana, separando-a daquilo que a caracteriza, que é fruto e expressão de um gesto amoroso, é a coisa mais natural do mundo. Produzem-se embriões e reproduzem-se seres humanos como se reproduzem animais. Por aí se vê que o que falta aos discípulos de Mengele é uma adequada concepção filosófica e antropológica, além de um mínimo de honestidade em termos éticos. Para eles a vida não é mais do que uma combinação química e a transmissão da vida humana não é mais do que um processo mecânico.

Decisivamente talvez se perceba melhor agora a veracidade de uma frase muito repetida em nossos dias: nós nos encontramos num momento decisivo da nossa história. Se os discípulos de Mengele, movidos por um materialismo crasso e mensageiros de um ilusório progresso não forem desmascarados, os discípulos de Mendel não terão outra alternativa além daquela de plantar ervilhas nas hortas dos conventos. Entretanto, a história parece mostrar que, mesmo com muitos erros, o bom senso sempre acaba triunfando em algum momento. E o bom senso hoje se resume nisto: que as eventuais limitações humanas não sirvam de argumento para desfigurar a maravilhosa obra de Deus. Antes, a partir das limitações com as quais, mais cedo ou mais tarde todos irão se deparar, os mistérios dos sofrimentos, morte e ressurreição de Cristo passarão a iluminar os caminhos de todos os seres humanos capazes de colocarem para si próprias as verdadeiras questões relacionadas com a vida e suas contingências.

Assim, enquanto Mengele não passará de uma triste lembrança dos desastres causados pela prepotência de alguns que se julgam donos do mundo, Mendel poderá ser o ícone daqueles que pesquisam incansavelmente para, na medida do possível, aliviarem os sofrimentos, mas sempre com o pressuposto de que sua missão não consiste em vender ilusões, e sim ajudar a todos a se defrontarem corajosamente com a realidade da condição humana. Se é verdade que nem todos os males podem ser vencidos pelos homens, é verdade que os males que eles mesmos causam uns aos outros, através das mais variadas formas de violência e maldade no sentido moral do termo, poderão ser banidos da face da terra. E assim, até mesmo os eventuais fardos se tornarão mais leves e até mesmo as lágrimas servirão para irrigar a terra na busca da construção de uma casa comum, onde todos tenham o prazer de conviver por algum tempo.

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