Especialista comenta o pesadelo emocional vivido por sobreviventes de tragédias
Quando acompanhamos pelas mídias as grandes tragédias e catástrofes, nos sentimos compadecidos por vários dias, ou até semanas. Depois de um tempo, não lembramos mais e continuamos nossas vidas. No entanto, para quem viveu a tragédia o pesadelo não acabou. Muitos perderam tudo, ou a quem mais amavam e a dor da perda, da saudade, pode ser ainda mais torturante que o momento da catástrofe. Muitos se sentem até abandonados por Deus.
“Perdi a casa, perdi tudo que tinha.”
“Achei que tudo fosse um pesadelo que iria passar, mas não passa. Já se passaram dois anos e eu continuo morando de favor na casa de minha tia.”
“Perdi a todos que eu mais amava… Por que Deus permitiu isso? Eu preferia ter morrido também.”
“Sou apenas uma sobrevivente.”
“Me sinto desconectada, será que vou poder recuperar quem sou?”
Estas frases, ditas por pessoas que passaram por catástrofes, exprimem a dor que sangra dentro delas. Os prejuízos econômicos, perdas de vidas, perda de meios de subsistências, lesões corporais, são os danos mais visíveis para toda a população, porém o efeito mais perverso e difícil de mensurar são os impactos psicológicos, as feridas da mente. O relatório intitulado “Saúde Mental e Nosso Clima em Mudança: Impactos, Implicações e Orientação”, da Associação Americana de Psicologia, revela que uma em cada seis pessoas que vivenciaram catástrofes apresentou sintomas de estresse pós-traumático (TEPT), e 49% desenvolveram ansiedade ou depressão além dos sintomas característicos do TEPT, como insônia, estado constante de alerta, pesadelos, pensamentos recorrentes do episódio, e isolamento. Todos esses sintomas prejudicaram também a saúde física, deixando o sistema imunológico enfraquecido. Buscando aliviar a dor, muitos vão para o uso de substâncias químicas, como álcool e drogas. Algumas pessoas se tornam apáticas a tudo como uma forma de defesa evitando sentir a dor, outras chegam a se tornarem agressivas. Se pensarmos em uma grande tragédia que envolva uma comunidade inteira, essa agressividade poderá ser desastrosa. O extremo é o desejo de tirar a própria vida. As taxas de suicídio duplicaram após o furacão Katrina em 2005, nos EUA, por exemplo.
No Brasil, os dados não são diferentes. Em Mariana, 16,4% das vítimas do rompimento da barragem de Fundão (2015) apresentavam comportamento suicida em 2017. Das 271 vítimas entrevistadas, 28,9% sofriam de depressão, segundo o projeto “Pesquisa sobre a Saúde Mental das Famílias Atingidas pelo Rompimento da Barragem do Fundão em Mariana (Prismma)” da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Da mesma forma que a medicina cuidará dos ferimentos do corpo e esses cicatrizarão, também o cérebro precisará curar as feridas deixadas na mente. A mente tem um sistema de processamento para cicatrizar as feridas e dar sentido a elas. Descobertas a respeito do cérebro mostram esse potencial, como eu relato em meu livro “Cura dos sentimentos em mim e no mundo”. No livro explico que “trauma”, em grego, quer dizer ferida. Dessa forma, o trauma, sim, é uma ferida no cérebro. Se formos colocados numa máquina que escaneie nosso cérebro enquanto lembramos do momento traumático, a parte emocional ficará hiper-ativada; em contrapartida nosso córtex pré-frontal, mais especificamente a região chamada de área de broca, fica quase sem ativação neuro-química. A comunicação entre o cérebro que guarda as emoções intensas, não consegue se comunicar com o cérebro que pensa. É uma memória guardada de forma disfuncional. Ficamos presos na dor. Não se trata apenas de um problema psicológico, o funcionamento cerebral fica alterado diante de um grande trauma. As primeiras pesquisas de cura para essas feridas se deram com pessoas que viveram na guerra do Vietnã ou mulheres estupradas. O tratamento com a técnica EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing), criado por Francine Shapiro após essas descobertas, consiste em estimular as áreas bloqueadas do cérebro com estímulos bilaterais táteis, visuais e auditivos, provocando a “cicatrização” das “feridas” emocionais. Um grande trauma é capaz de bloquear no cérebro as lembranças positivas e pensamentos negativos a respeito de si mesmo surgem, como “sou culpado”, “deveria ter salvado minha família”, “sou merecedor de castigo”. Diante das descobertas de Francine Shapiro, muitos psicológicos no mundo todo estão aprendendo e aplicando a técnica. O método de tratamento EMDR é oficialmente reconhecido pela Associação Americana de Psicologia, pela Sociedade Internacional para Estudos sobre o Estresse Traumático e pela Organização Mundial da Saúde.
Francine Shapiro, que faleceu em Junho deste ano, prestou muita ajuda humanitária em diversos países que passaram por catástrofes, levando psicólogos do EMDR para aplicar a técnica gratuitamente nesses momentos de profunda dor do ser humano. No Brasil, em Petrópolis, Brumadinho e com familiares da Boate Kiss, terapeutas do EMDR fizeram a mesma coisa, se doaram para aliviar o sofrimento.
Em meu livro “Vencendo os traumas que nos prendem” lançado este ano pela Canção Nova, eu me reporto a uma das dores mais comuns nos casos de catástrofes: o sentimento de abandono de Deus. Essa é uma das dores mais profundas, porém, sim, é possível curá-la, quando a ferida for tratada.
Algumas pessoas muito religiosas quando passam por traumas agudos dizem não conseguirem nem rezar e isso é extremamente compreensível, o cérebro está adoecido, a pessoa precisa primeiramente ser ajudada, para poder voltar a exercer suas manifestações de fé. Tive um paciente que depois de ter curado sua ferida no cérebro disse: “Deus não me abandonou, ele chorou comigo!”
Na tragédia em Petrópolis, no Rio de Janeiro em 2011, após as enchentes e deslizamentos de terra, uma sobrevivente relata que não conseguia “tirar da cabeça” o cheiro da lama e o barulho do vento. Lembra-se do vizinho que voltou para pegar o cachorro, mas a casa caiu. Chorava ao dizer que não tinha mais foto nenhuma de sua infância. Ela não conseguia mais assistir à previsão do tempo e os sintomas de ansiedade se intensificavam com qualquer vento ou chuva prestes a chegar. Após o reprocessamento com o uso da técnica, ao expor a paciente ao som da chuva, ela lembrou de quando era criança e tomava banho de chuva sorrindo. Lembrou-se também do cheirinho de terra molhada, da sensação gostosa do vento entrando pela janela. Isso não é maravilhoso? A dor deixa de existir e os sintomas se transformam, dão lugar ao belo novamente, à vida. Tive uma professora que dizia que a vida é um lindo jardim, com muitas flores de várias espécies, e que a dor e o sofrimento são como uma lama, uma caçamba de lama jogada nesse jardim que esconde o belo. A cura é tirar a lama e perceber que o jardim ainda está ali. Parece algo impossível, mas o cérebro tem esse lindo potencial de cura e consegue enxergar novamente as flores da vida.
No desastre ocorrido em uma mina de carvão na Inglaterra, depois do tratamento, muitos trabalhadores deixaram de trabalhar nisto, não por medo, mas porque agora eram capazes de fazer novas escolhas. “Eu não quero mais fazer isso, me tornei mineiro só porque meu pai era mineiro, mas eu sempre quis algo a mais”, ou seja, diante de uma situação terrível eu posso me tornar uma pessoa muito melhor do que sou hoje. O problema é que se a pessoa permanece presa aos traumas ela não consegue dar esse passo. O cérebro precisará entender que o pior já passou. E os seres humanos têm uma condição incrível de renascer, de recomeçar.
Estive há poucos dias nos Estados Unidos palestrando e conheci o Memorial e Museu Nacional do “11 de Setembro” e fiquei impactada. Todas as construções ilustram a força que o ser humano tem para se reerguer. No local onde ficavam as torres, há um paredão de água que se esvai num profundo e gigantesco buraco. Só se ouve o barulho da água e um silêncio entre os turistas. É inevitável que se pense no sentido da vida e no valor de cada vida perdida nomeada no mármore que circunda a obra. Lembrei-me que nas semanas subsequentes da queda das torres, falei com pessoas e consagrados que estavam em Nova York. Todos mencionaram a humanidade, a unidade, a fraternidade gerada entre as pessoas. É disso que estou falando para quem está lendo esse artigo e pensa que tudo acabou. Isso não é verdade, há algo a mais, há algo maior, há algo que vai além.
Curar um trauma não é apagar da memória o fato traumático, se fizermos isso vamos também descartar coisas úteis, jogar fora aprendizados, e principalmente deixar de ver o sobrenatural que te fez continuar vivo.
* Adriana Potexki é psicóloga, certificada pelo EMDR Institute; autora dos livros “Cura dos sentimentos – em mim e no mundo”, “A cura dos Sentimentos nos Pequeninos – Papai e Mamãe brigaram” e “Vencendo Os Traumas que nos Prendem”; colunista do canal Formação Canção Nova e membro do Movimento dos Focolares.