A reforma do Código Penal Brasileiro, confiada a uma Comissão em 18 de outubro de 2011, agora já tramita, como Projeto de Lei do Senado nº 236, de 2012, conhecido também como Projeto Sarney.
Houve audiências públicas, mas reclama-se de uma escuta desigual do pensamento da sociedade e de uma atenção privilegiada a grupos de interesse e pressão, em detrimento também da comunidade especializada do mundo jurídico, que sente a falta de um tempo mais adequado para a reflexão serena sobre as propostas de mudança.
O calendário fixado pela presidência da casa para a tramitação do Projeto Sarney no Senado revela uma pressa estranha: de 9 de agosto a 5 de setembro, apresentação de emendas; de 6 a 20 de setembro, relatórios parciais; de 21 a 27 de setembro, relatório do Relator Geral; de 28 de setembro a 4 de outubro, parecer final da Comissão. E não passa desapercebido que tudo isso acontece enquanto o interesse da Nação não está voltado para o Planalto Central, mas para as eleições municipais. Por que tanta pressa?
Entre as propostas mais controvertidas do novo Código Penal estão as revisões penais relativas ao aborto. Além dos casos de aborto “não punível” já previstos – em caso de risco de vida para a mãe; em caso de estupro; em caso de malformação do cérebro -, introduzem-se, agora, casos em que o aborto deixa de ser crime e outros, em que, mesmo ainda prevendo penas, na prática essas não se aplicam.
O aborto praticado sem o consentimento da mãe será punido; mas se for praticado com o consentimento da mãe, a pena acaba não sendo aplicada. Desse modo, resguarda-se a decisão de um sujeito adulto e autônomo, mas não se protege o direito à vida de um sujeito inocente e indefeso.
Se o Projeto Sarney for aprovado, como proposto, a natureza lesiva do aborto ficará radicalmente alterada; nos arts. 125 e 126, as penas são abrandadas para um mínimo de seis meses e um máximo de dois anos de prisão e o aborto passa a ser um crime de menor potencial ofensivo; assim, poderá ser julgado no âmbito informal e célere da chamada justiça consensual.
Além da redução penal para o aborto consentido, prevêem-se ainda hipóteses em que o aborto deixa de ser crime e sua prática acaba sendo considerada um direito. No caput do art. 128 proclama-se de forma taxativa: “não há crime” – no aborto terapêutico, aborto sentimental, aborto eugênico e aborto psicológico. Não só desaparece a pena, como também se estabelece que esses atentados contra a vida do nascituro estão em conformidade com o direito.
Também não há crime de aborto “se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida” (art. 128); essas práticas seriam equiparáveis ao estupro. Resta saber o que se entende por “violação da dignidade sexual”, um conceito tão vago quanto abrangente. Neste caso genérico, bem como na aplicação não consentida de técnicas de reprodução assistida, a pena não será para os autores dessas façanhas, mas para o pequeno indefeso e inocente, que pagará com a vida pela monstruosidade e a fraude de adultos irresponsáveis. Seria uma pena justa e adequada?
A morte dada a um bebê originado de fecundação não consentida não será crime; no entanto, a esterilização de uma mulher, sem seu consentimento, é punida com 2 a 4 anos de reclusão. O contraste é absurdo. Mata-se o filho, e não há censura penal; mas pune-se com rigor o agente da esterilização!
Mais absurda ainda é a “legalização” do aborto psicológico, conforme o art. 128: “não há crime de aborto: IV – se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas para arcar com a maternidade”. Basta que ela tenha o beneplácito do médico ou do psicólogo para decretar a morte do feto. Este artigo, na prática, legaliza amplamente o aborto, que não consegue aprovação, como projeto de lei, mas entra pela janela dos fundos, via Código Penal…
Custa-me crer que alguém, em sã consciência, defenderia a pena de morte para uma criança recém-nascida e indefesa; seria desumano e monstruoso! E que diferença faz, entre uma criança de um dia de vida e outra, ainda não nascida? Sei que há o argumento falacioso de que a criança não nascida não teria direitos, pois ainda não é um cidadão. Esquecido fica, neste caso, que o ser humano é anterior ao Estado e seu direito inalienável à vida precede qualquer “direito cidadão” atribuído pelo Estado.
Mais outras questões mereceriam maior discussão no Projeto Sarney, como a disparidade injustificável na aplicação das penas. Matar ou caçar algum animal silvestre sem permissão da autoridade competente será punido com dois a quatro anos de prisão. A pena poderá chegar a 12 anos, se o crime for praticado como exercício de caça profissional (art. 388).
Maus tratos contra os animais serão punidos com penas de um a quatro anos de prisão, podendo chegar a 6, se ocorrer a morte do animal. E matar um animal numa experiência científica leva a uma pena de até seis anos de prisão (art 391). No entanto, matar uma criança concebida “por meios ilícitos” não leva a nenhuma penalização.
O art. 394 prevê punição com até 4 anos de prisão para quem deixar de prestar assistência ou socorro a um animal, que esteja em grave perigo. Estranhamente, a omissão de socorro a uma pessoa nas mesmas condições, criança ou adulto que seja, poderá ter uma pena máxima de seis meses de prisão (art 132)! Que estranha justiça é essa, que tutela tão bem a vida de animais, enquanto despreza o ser humano, como se nada valesse?!
Mulheres e homens sensatos do Congresso Nacional, não seria melhor amadurecer mais esta reforma do Código Penal?