Ministério da Saúde lançou, recentemente, nova linha de cuidados para o Transtorno do Espectro Autista; neurologista comenta as novidades
Aline Imercio
De São Paulo (SP)

Foto: Canva Pro
Em setembro deste ano, o Ministério da Saúde lançou a nova linha de cuidados para o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Entre as orientações está o teste de sinais do autismo chamado M-Chat, para crianças que tenham entre um ano e quatro meses e dois anos e seis meses.
A equipe do Jornalismo Canção Nova conversou com o neurologista e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil, doutor Marcelo Masruha, sobre o diagnóstico e os avanços no conhecimento sobre o Autismo. Leia a entrevista:
O que é o autismo?
Dr. Marcelo Masruha: O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento, condições crônicas que evoluem ao longo de anos, que têm uma causa complexa, tanto por fatores genéticos quanto ambientais, e levam a uma alteração do desenvolvimento normal ou típico do cérebro. Então, essas causas alteram o desenvolvimento do cérebro ainda no útero, e, com isso, levam a comportamentos atípicos, alterações cognitivas e emocionais. Então, o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento que se caracteriza por um comprometimento da interação social, da interação entre pessoas e padrões repetitivos e restritos de comportamentos. Os indivíduos com autismo têm uma dificuldade social, e eles têm comportamentos que tendem a ser repetitivos, essas são as duas características principais do autismo.
Existem fatores de risco para uma criança nascer autista?
Dr. Marcelo Masruha: O principal fator de risco realmente é genético. Estudos em gêmeos, por exemplo, mostram que a concordância entre gêmeos idênticos é quase de 100%. Ou seja, se você tem um gêmeo idêntico univitelino com autismo, a chance do outro ter também é quase 100%. Se você tem um irmão, a chance também aumenta. Então o fator de risco genético é o principal. Mas também existem outros fatores, como por exemplo, a idade dos pais avançada acima de 35 anos, ou complicações durante a gestação. Também o bebê nascer prematuro, síndrome metabólica materna durante a gestação, a obesidade da mãe, diabetes gestacional, icterícia neonatal, todos esses são fatores de risco. Isoladamente eles não causam autismo, mas eles se associam, aumentando o risco para o transtorno, e desta somatória, aquilo que é mais importante é a predisposição genética.
Os indivíduos com autismo têm uma dificuldade social e eles têm comportamentos que tendem a ser repetitivos, essas são as duas características principais do autismo.
E hoje quais são os mecanismos para se chegar ao diagnóstico de autismo?
Dr. Marcelo Masruha: O diagnóstico é clínico, não existem exames complementares que permitam o diagnóstico. O diagnóstico se baseia em critérios que constam da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (…). Então você tem um conjunto de critérios que médicos que têm que ter experiência no assunto aplicam, geralmente são neuropediatras ou psiquiatras infantis, mas também pediatras que tenham vivência em alterações no desenvolvimento, e através desses critérios é que é feito o diagnóstico. Então, exames de imagem como tomografia, ressonância, exames genéticos, exames de sangue, nada disso se presta para o diagnóstico de autismo. Agora, uma vez feito o diagnóstico é possível que haja necessidade, não é em todos os casos, de se solicitar alguns exames para tentar chegar à causa do autismo especificamente naquela pessoa. Mas o diagnóstico do autismo em si, ele é clínico, puramente clínico.

Dr. Marcelo / Foto: Reprodução TV Canção Nova
Na nova linha de cuidados para TEA do Ministério da Saúde, cita-se o teste de rastreio M-CHAT já nos 16 meses de vida. É possível identificar o autismo nos primeiros anos de vida?
Dr. Marcelo Masruha: Sem dúvida. Antes de um ano é muito mais difícil, mas a partir de um ano, um ano e meio de idade, a chance de você acertar o diagnóstico, passando em consulta com um profissional experiente, já aumenta bastante. E existem ferramentas de rastreio. Então, o Ministério da Saúde anunciou uma medida importante que passa a garantir que as crianças que estão sendo acompanhadas por pediatras gerais na rede pública de saúde passem por um exame de triagem, de rastreio, uma ferramenta chamada M-Chat.
É uma ferramenta que vem do inglês, mas traduzida para o Brasil, que já é recomendada em vários protocolos internacionais, onde são feitas perguntas para a família sobre o desenvolvimento da criança. Então, por exemplo, se a criança imita, se ela aponta e se ela dá tchau, se joga beijo, se o contato visual olho no olho é bom ou se já está falando. São perguntas simples que o pediatra aplica rapidamente e a partir do resultado desse conjunto de perguntas vem uma pontuação. E por essa pontuação, se houver uma pontuação numa faixa de risco, essa criança deve ser encaminhada para o especialista para que seja confirmado ou afastado o diagnóstico.
O diagnóstico do autismo em si, ele é clínico, puramente clínico.
É um instrumento de rastreio e de triagem, mas muito importante, uma iniciativa realmente louvável, porque vai permitir um diagnóstico mais precoce. Quanto antes o diagnóstico mais precocemente vão ser instituídas as terapias, (…) quanto antes for suspeito e instituídas as terapias, melhor o prognóstico e a evolução da criança.
Para os pais, além de seguir todos os protocolos do Ministério da Saúde, existem alguns sinais que são possíveis de serem observados em casa para investigar o diagnóstico do autismo em uma criança?
Dr. Marcelo Masruha: Com certeza isso é muito importante. Então geralmente essas crianças são levadas à consulta por um atraso de fala. Nem toda criança com autismo vai atrasar para falar, mas boa parte delas vai ter um atraso de fala. Mas antes mesmo que a família note esse atraso de fala, muitas crianças já estão manifestando dificuldade, por exemplo, de manter o contato olho no olho, é uma pista. São crianças que tendem a não imitar o comportamento dos pais. Então, com um ano de idade a criança já tem que estar imitando comportamentos, por exemplo, dar tchau, jogar beijo, apontar até um ano e meio, a criança tem que apontar o que quer, mas usar o corpo do pai ou da mãe como um instrumento é uma pista muito forte que possa ter o transtorno. Como assim como instrumento? Então, ao invés de apontar para a porta mostrando que quer que abra a porta ou apontar para um objeto que está no alto, a criança pega o antebraço ou a mão do pai ou da mãe, coloca sobre o objeto, sobre a maçaneta da porta, sobre um puxador de gaveta, sob a tampa de um baú.
Comportamentos repetitivos do tipo ficar enfileirando objetos ou abrindo e fechando objetos repetidamente. E mais uma vez, é importante dizer que não é fazer isso uma vez ou outra. São crianças que brincam apenas desta forma (…). Não usar os brinquedos com a finalidade lúdica daquele brinquedo, não dar função ao brinquedo. Então, por exemplo, não pegar um carrinho e fingir que está fazendo um circuito, um aviãozinho e fingir que está voando, ele pega e só fica girando a roda, ou então ele deita no chão com a cabeça de lado e fica para frente e para trás observando o movimento do objeto.
Outra coisa que chama atenção são as questões sensoriais. Então intolerância a ruídos, a texturas, criança que não tolera se sujar, que não consegue segurar algo mais mole com a mão, não consegue colocar meia. É importante salientar que esses sinais, isoladamente, não permitem o diagnóstico. Então, por exemplo, tem crianças que têm questões sensoriais isoladas. A gente chama de transtorno do processamento sensorial. Mas, se ela tiver isso e mais questões de socialização, dificuldade de olhar, manter o contato olho no olho, atraso de fala, não tiver uma comunicação não verbal adequada, aí sim é grande a chance de ter um transtorno do espectro do autismo.
Os casos de autismo realmente aumentaram ou foram os diagnósticos que começaram a ser feitos?
Dr. Marcelo Masruha: Existe uma disputa científica, muito debate em torno desse tema. Se esse aumento é real ou até artefatual, o mais provável é que as duas coisas estejam acontecendo. Então, por exemplo, com a mudança para diagnósticos em 2013, ficaram os critérios mais amplos e inclusivos. A própria Síndrome de Down, cerca de 18% das crianças com Down são autistas e antigamente elas só recebiam diagnóstico de Síndrome de Down. Então houve, pela mudança dos critérios, a possibilidade de incluir casos que até então não eram incluídos, isso explica uma parte. Outro motivo é a maior conscientização da população, como se fala muito atualmente sobre o autismo nas redes sociais, as pessoas estão cada vez entendendo mais.
Existe uma outra corrente científica que acha que também está havendo um aumento real, além desse aumento artefatual. Isso me parece correto também porque se você perguntar para os professores de educação infantil quantas crianças eles tinham antes com atraso de fala e autismo nas escolas, eles vão falar para você que numa escola inteira, isso há 20 anos, tinha duas, três crianças com esse diagnóstico, hoje você tem duas ou três crianças por sala de aula. E eu não acho possível que não se percebesse isso há 20 anos, porque a criança tem atrasos de fala importantes são crianças com dois ou três anos, que não estão falando absolutamente nada ou muito pouco. Então, qual era a justificativa que se dava anteriormente para essas crianças que não estavam falando? Você teria que ter duas, três crianças por sala de aula que não estão falando e que estão recebendo outros diagnósticos, isso não acontecia.
No meu consultório há 20 anos, eu atendia por mês dois três casos novos, hoje todo dia eu atendo pelo menos dois três casos novos. Então a minha percepção é que também está havendo um aumento real.
Cada vez mais a gente está entendendo sobre o tratamento do autismo. A base do tratamento é a terapia comportamental baseada na ciência ABA, que é a sigla para Análise do Comportamento Aplicada
Os tratamentos para o autismo também cresceram bastante?
Dr. Marcelo Masruha: Muito, houve um aumento exponencial no conhecimento sobre tratamento do autismo nos últimos 20 anos. Se você pegar o número de artigos publicados, cresceu exponencialmente. Cada vez mais a gente está entendendo sobre o tratamento do autismo. A base do tratamento é a terapia comportamental baseada na ciência ABA, que é a sigla para Análise do Comportamento Aplicada, e essa é a base do tratamento, principalmente para aquelas crianças menores que têm atraso de fala, problemas de interação ou comportamento.
Indivíduos maiores que passaram com diagnóstico de desapercebido, que estão falando bem, para esses existem a terapia cognitivo comportamental, por exemplo. Mas a terapia comportamental baseada na ciência ABA é a pedra fundamental do tratamento e outras terapias são muitíssimo importantes: terapia fonoaudiológica, terapia ocupacional, fisioterapia motora, musicoterapia e, eventualmente, o uso de medicamentos que a maioria dos pacientes com autismo não vai precisar, mas alguns vão precisar de remédios para questões de comportamento agressivo ,epilepsia, questões de sono que não responde a medidas comportamentais precisam ser medicados, eventualmente.
Mas não existe no momento um remédio que trate os sintomas nucleares, as manifestações nucleares do autismo, por exemplo, um remédio que melhora a comunicação ou a capacidade de interação social ou que diminua os comportamentos repetitivos.