Bispo da Prelazia do Xingu

"A liberdade interior ninguém me tira", diz dom Erwin Kräutler

O bispo da Prelazia do Xingu (PA), dom Erwin Kräutler, foi entrevistado no programa “Construindo Cidadania”, da rádio 9 de Julho, na última terça-feira, 11. Ele falou sobre os direitos dos indígenas no Brasil. A entrevista é reproduzida pelo O SÃO PAULO. 

Rádio 9 de JulhoDom Erwin, volta e meia, nos deparamos com a violência contra os índios. Por que esta má vontade contra eles?

Dom Erwin Kräutler – Eu também me pergunto isso sempre. É uma má vontade que já atravessa séculos, sempre aquela rejeição, porque no fundo, no fundo, se quer chegar onde os índios estão e não se admite que eles tenham direito a suas terras ancestrais. E muitas dessas terras contêm riquezas naturais e a ganância faz desrespeitar os direitos adquiridos há séculos pelos povos indígenas.

Rádio 9 de JulhoOs povos indígenas cresceram na consciência de seus direitos?

Dom Erwin – Sim. A partir da nossa Constituição. Eu me lembro perfeitamente, no ano de 1982, quando lutamos pela inclusão dos direitos indígenas na atual Constituição. Dali, paulatinamente, eles começaram a se firmar também na sua própria identidade. Os direitos indígenas estão inscritos nos artigos 231 e 232. Isso é fruto de uma luta destemida dos próprios povos indígenas que se fizeram representar nas galerias do Congresso. A partir dali, os índios pelo Brasil afora passaram a se orgulhar de serem índios, de pertencer a algum povo. Porque teve uma época em que eles queriam se esconder. Graças a Deus, os povos indígenas amadureceram e estão hoje orgulhosos de pertencer a esta ou àquela etnia.

Rádio 9 de JulhoComo está e como ficará a situação dos indígenas na região em que se constrói a Usina de Belo Monte?

Dom Erwin – Esse projeto está sendo executado a pleno vapor. Já foram gastos bilhões e o governo não pretende recuar, embora haja cerca de 50 ações judiciais tramitando. O próprio Ministério Público Federal entregou 15 ações judiciais que não estão sendo tratadas. Isso para mim é muito grave, porque os mais prejudicados são os povos indígenas. Afirma-se que eles não serão atingidos porque suas aldeias não seriam afundadas, pelo menos na primeira fase de execução do projeto. O que acontece é que a água será cortada para essas aldeias. Então, eles vão entrar numa situação terrível de pensar, sem água não há vida, não há locomoção. Eles vivem do peixe e o peixe só existe na água. E depois, há a proximidade das aldeias ao canteiro de obras, e aqui nem precisa explicar as consequências nefastas para os povos indígenas.

 

Rádio 9 de JulhoQual tem sido o trabalho da Igreja hoje, uma vez que ela sempre esteve presente na luta dos povos indígenas?

Dom Erwin – A primeira coisa a dizer é que a Igreja, a CNBB tem seu braço indigenista que é o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que está atuando em todo o Brasil com duas finalidades. A primeira é a nossa presença nas próprias aldeias. E a segunda é a conscientização, a sensibilização do povo brasileiro a respeito dos direitos dos povos indígenas. A Igreja continua enfrentando o governo que é omisso e negligente em relação aos povos indígenas. É uma das poucas entidades que realmente enfrentam o governo. Ela exige, em nome da própria Constituição Federal, um tratamento diferenciado para esses povos. De fato, a Igreja continua nessa luta.

 

Rádio 9 de JulhoOutras Igrejas cristãs também se somam à Igreja Católica nessa luta?

 

Dom Erwin – Aqui eu diferencio. As Igrejas tradicionais, como a luterana, rezam conosco pela mesma cartilha. Infelizmente, porém, existem outras denominações cristãs que andam pelas aldeias e não têm essa visão. Veem em primeiro lugar a conversão desses povos para a sua maneira de viver o Cristianismo, o que implica, muitas vezes, na destruição da própria cultura e da identidade de um povo. Logicamente, nesse ponto, as Igrejas Católica e Luterana têm uma visão diferente. Nós respeitamos a sua cultura. É claro que cada pessoa tem o direito de se tornar cristã. A decisão é de cada indígena. Mas ele não deve se tornar cristão renunciando sua própria identidade indígena. E isso nas Igrejas Pentecostais é um pouco diferente. Elas veem em primeiro lugar a conversão do indígena para sua comunidade com tudo o que isso implica.

 

Rádio 9 de JulhoCirculam na imprensa notícias de ameaças a dom Pedro Casaldáliga, bispo prelado emérito de São Félix do Araguaia (MT), por conta de sua defesa dos direitos dos indígenas. O que se passa realmente?

 

Dom Erwin – Primeiro, dom Pedro, desde que ele é Pedro, defende a causa indígena. Quando começou seu pastoreio em São Félix do Araguaia, ele fez uma opção clara e inequívoca em favor dos pobres e dos “outros”, isto é, dos que têm outra cultura. Então, nesse ponto, dom Pedro é emblemático, é um exemplo todo especial que exige veneração e admiração. O que aconteceu agora é o seguinte: a terra xavante está sendo desentrosada, quer dizer, os que a invadiram não têm o direito de ficar. Isso é uma decisão que se alicerça na própria Constituição Federal. Então, nessa situação em que estão sendo tiradas famílias e fazendeiros, gente que se julga proprietária, logicamente procura quem desde muito tempo defendeu o povo Xavante. Entre esses defensores está dom Pedro. No caso recente, o que aconteceu? Dom Pedro viajou para participar da festa de 90 anos de dom Tomás Balduíno, em Goiânia. Debilitado pelo mal de Parkinson e pela pressão alta, arranjaram, então, para ele uma viagem pela água. Quando ia embarcar, apareceu a Polícia Federal e o escoltou com medo que pudesse acontecer alguma coisa, porque se ouviu alguém gritar de um barco que ele não passava de determinada data. Então, o governo se adiantou e tem que defender a pessoa, porque se acontecer alguma coisa vai ter uma repercussão sem tamanho.

 

Rádio 9 de Julho O senhor mesmo vive em constante tensão, sob ameaça. Como é viver assim?

 

Dom Erwin – Eu estou há seis anos sob proteção da polícia que está aqui fora, escutando o que eu estou falando. A liberdade exterior é cerceada. Não posso mais andar por aí, nem sair de casa sem estar acompanhado por dois policiais. Nas celebrações da missa, nos encontros, nas viagens e visitas às comunidades estou sendo acompanhado por dois ou três policiais. Claro que isso é um golpe na liberdade da pessoa. Por outro lado, a liberdade interior ninguém pode tirar. E eu continuo falando e defendendo aquilo que em consciência julgo necessário ser defendido.

 

Rádio 9 de Julho Como ajudar os índios que vêm para a cidade, se eles tornam sem teto e caem no mundo das drogas ou se somam aos moradores em situação de rua?

 

Dom Erwin – Eu quero esclarecer que o índio aldeiado está na liberdade e é outro índio. O índio desaldeiado corre todos esses riscos. Temos que nos perguntar por que esses índios chegaram a essa situação, a esse tipo de vida. Por anos, o índio não foi aceito como pessoa humana, foi tratado como um pária da sociedade. O que nós queremos fazer é ajudar e prevenir os índios a não caírem no mundo do branco, que é um mundo viciado.

 

Rádio 9 de JulhoO crescimento econômico do país parece ser evidente. Temos o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), mas todo esse crescimento, ao que tudo indica, não está fazendo caso dos direitos dos povos indígenas. Como o senhor vê isso?

 

Dom Erwin – Eu estou seguro que o próprio governo entende desenvolvimento como crescimento econômico, quer dizer, o crescimento do PIB, o aumento do agronegócio. Os indicadores sociais estão sendo colocados num plano inferior. Quando se trata da qualidade de vida, isso para mim, é o primeiro indicador do desenvolvimento e não o PIB. O aumento do PIB tem que reverter numa melhor qualidade de vida. Hoje se diz que Belo Monte é o progresso. E eu convido quem diz isso a vir a Altamira (PA). Quem conhece Altamira como eu, desde 1975, e a vê hoje num terrível caos fica estarrecido. O que acontece aqui em nome de um tal desenvolvimento é um verdadeiro caos. Vai ficar estarrecido. Esta cidade de 120 mil habitantes foi jogada em um caos em termos de falta de saúde, numa situação de trânsito caótico, de criminalidade, de prostituição a céu aberto. Se isso é progresso, eu ensaco minha viola.

 

 

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