Papa Bento XVI

Íntegra da Catequese

Segue íntegra da Catequese desta quarta-feira, 12, feita pelo Papa Bento XVI:

Caros irmãos e irmãs!

Gostaria de falar de dois escritores eclesiásticos: Boécio e Cassiodoro, que viveram nos anos mais atribulados do Ocidente cristão e, especialmente, da Península Italiana.

Odoacre, rei dos Erulos (etnia alemã), havia se rebelado, colocando fim ao Império Romano do Ocidente (a. 476). Em seguida teve de ceder aos Ostrogotos de Teodorico, que durante várias décadas assegurou o controle da Península Italiana.

Boécio, nasceu em Roma, em 480, próximo à nobre linhagem de Anízios. Ainda jovem entrou na vida pública, chegando a ser senador aos 25 anos de idade. Fiel à tradição de sua família, comprometeu-se com a política, convicto de que poderia moderar as linhas gerais da sociedade romana com os valores das novas nações.

Neste novo tempo de encontro de culturas assumiu como missão a conciliação e a aproximação da cultura a clássica romana e com a do povo ostrogoto.

Foi ativo na vida política, mesmo sob Teodorico, que nos primeiros tempos o estimava muito. Apesar desta atividade pública, Boécio não se descuidou dos estudos, dedicando-se de maneira especial ao aprofundamento de temas filosófico-religiosos. Escreveu manuais de aritmética, geometria, música, astronomia. Tudo com a intenção de transmitir seus conhecimentos às novas gerações, aos novos tempos, a grande cultura grego-romana.

No empenho de promover o encontro de culturas, utilizou as categorias da filosofia grega para propor a fé cristã, em busca de uma síntese entre o patrimônio helenístico-romano e a mensagem evangélica. Precisamente por este motivo, Boécio foi descrito como o último representante da cultura romana antiga e o primeiro intelectual medieval.

Sua obra mais famosa é, sem dúvida, a De Consolatione Philosophiae, composta quando estava na prisão para dar sentido à sua injusta detenção.

Ele foi acusado de conspiração contra o rei Teodorico por ter assumido a defesa em tribunal de um amigo, o senador Albino. Mas este foi só um pretexto: na realidade Teodorico, ariano e bárbaro, suspeitava que Boécio se simpatizasse pelo imperador bizantino Justiniano.

Foi julgado e condenado à morte, sendo executado em 23 de outubro de 524, com apenas 44 anos. Sua experiência serve de exemplo ao homem contemporâneo, especialmente às pessoas que sofrem a mesma sorte, como resultado da injustiça presente em grande parte da "justiça humana".

Na obra escrita na prisão, Boécio procurou consolo, luz e sabedoria. Diz que foi capaz de distinguir, na presente situação, entre os bens aparentes – que desaparecem no cárcere – e os bens verdadeiros, como a amizade que, mesmo na prisão não desaparecem.

O bem maior é Deus. Boécio aprendeu e nos ensina: “Não caiam no fatalismo, que extingue a esperança”. Ele nos ensina que "A vida não é governada pelo acaso, mas pela providência".

Podemos falar que a providência é Deus. Assim, mesmo na prisão, é possível rezar e dialogar com Aquele que salva. Ao mesmo tempo, mesmo nesta situação, é possível manter o senso da beleza, da cultura e recordar o ensinamento dos grandes filósofos gregos e romanos antigos como Platão, Aristóteles, Cicero, Sêneca, Tibullo e Virgilio.

A Filosofia, no sentido da pesquisa da verdadeira sabedoria é, segundo Boécio, o verdadeiro remédio da alma (lib. I). Por outro lado, o homem pode experimentar a autêntica felicidade na própria interioridade (liv. II). Por isso, Boécio consegue encontrar, à luz de um texto do livro da Sabedoria do Antigo Testamento, um sentido em sua tragédia pessoal (Sab 7,30-8,1): "Contra a sabedoria o mal não pode prevalecer. Ela se estende de uma extremidade a outra com força e bondade excelente governa tudo" (Liv. III, 12: PL 63, col. 780). A, assim chamada, prosperidade dos maus se revela, portanto, mentirosa (lib. IV), e evidencia a natureza providencial da adversa fortuna.

As dificuldades, não só revelam o quanto a vida é efêmera e de curta duração, mas, que podem ser úteis para identificar e manter autênticas as relações entre os homens.

A má sorte permite discernir os falsos amigos dos verdadeiros e faz compreender que nada é mais precioso para o homem do que uma amizade verdadeira.

“Aceitar fatalmente uma condição de sofrimento é absolutamente perigoso”, acrescenta o crente Boécio. “Porque elimina pela raiz a possibilidade da oração e da esperança teologal que estão na base da relação do homem com Deus", disse. (Lib. V 3: PL 63, col. 842 ).

A prerrogativa final de De Consolatione Philosophiae pode ser considerada uma síntese de todos os ensinamentos que Boécio dirigiu a si mesmo e a todos aqueles que já se encontraram nas mesmas condições que ele. Assim ele escreveu na prisão: "Combatam os vícios, dediquem-se a uma vida virtuosa orientada pela esperança de que impele o coração para o alto até alcançar o céu com orações alimentadas pela humildade. A imposição que vocês sofrem pode mudar, sempre que vocês rejeitarem a mentira, nas enormes vantagens de ter diante dos olhos o juiz supremo que vê e sabe como estão verdadeiramente as coisas"(Lib. V 6: PL 63, col. 862).

Todo detento, seja qual for a razão pela qual acabou na prisão, sabe como esta pena é pesada, especialmente quando ocorrem torturas, como aconteceu com Boécio. É absurdo o que aconteceu com Boécio (reconhecido por sua cidade, Pavia, que o celebra na Liturgia como um mártir da fé), que foi torturado até a morte, sem qualquer outro motivo que não fosse sua convicção ideal, política e religiosa.

Boécio, símbolo de um grande número de pessoas presas injustamente, representa a porta de entrada para a contemplação do misterioso Crucificado do Gólgota.

Marco Aurélio Cassiodoro foi contemporâneo a Boécio. Era um calabrês nascido em Squillace por volta de 485. Morreu com idade avançada em Vivarium por volta de 580. De alto nível social, se dedicou à vida política e cultural, como poucos no ocidente romano do seu tempo. Talvez os únicos que podiam estar a par dele neste duplo interesse fossem os já mencionados Boécio e o futuro Papa de Roma, Gregório Magno(590-604).

Conscientes da necessidade de não deixar cair no esquecimento todo o patrimônio humano e humanístico, acumulado ao longo dos séculos do ouro do Império Romano, Cassiodoro colaborou generosamente, nos âmbitos mais elevados da responsabilidade política, com os novos povos que haviam atravessado as fronteiras do Império e foram para a Itália.

Foi um modelo de encontro cultural, diálogo e reconciliação. Os acontecimentos históricos não lhe permitiram realizar seus sonhos políticos e culturais. Criou uma síntese entre a tradição romano-cristã da Itália com a nova cultura gótica. Esses mesmos acontecimentos, no entanto, o convenceram sobre a providência do movimento monástico que estava se afirmando em terras cristãs. Sobre isso, ele dedicou toda a sua riqueza material e suas forças espirituais.

Ele concebeu a idéia de confiar aos seus monges a tarefa de recuperar, preservar e transmitir a posteridade do imenso patrimônio cultural dos antigos, para que não se perdessem. Por isso, fundou o Vivarium, um cenóbio onde tudo foi organizado de modo que fosse estimado como precioso e irrenunciável o trabalho intelectual dos monges. Dispôs que até mesmo que os monges sem formação intelectual não deveriam se ocupar somente do trabalho material, da agricultura, mas também de transcrever os manuscritos e, assim, ajudar na transmissão da grande cultura para as gerações futuras. Isso, sem qualquer prejuízo ao compromisso espiritual dos monges e para a atividade caritativa para os pobres.

Em seu ensinamento, distribuído em várias obras, mas sobretudo no Tratado De anima e Institutiones Divinarum Litterarum, a oração (cf. PL 69, col. 1108), alimentada pela Sagrada Escritura e particularmente por assídua freqüência aos Salmos (cf. PL 69 , Col. 1149), teve sempre uma posição central como nutrimento necessário para todos. Este é um exemplo de como este doutor Calabrês introduziu sua Expositio em Psalterium: "Abandonadas em Ravena, as solicitações da carreira política marcadas pelo sabor desgostoso das preocupações mundanas, após ter desfrutado do Saltério, livro vindo do céu qual autêntico mel da alma, mergulhei como sedento para perscrutá-lo incansavelmente para me deixar permear de toda a doçura salutar depois de ter provado o suficiente das inúmeras amarguras da vida ativa"(PL 70, col. 10).

A busca de Deus, a sua tensa contemplação – anota Cassiodoro – permanece o objetivo permanente da vida monástica (cf. PL 69, col. 1107). Ele acrescenta, porém, que, com a ajuda da graça divina (cf. PL 69, col. 1131.1142), uma melhor utilização da Palavra revelada pode ser alcançada através da utilização de instrumentos científicos e culturais "profanos" já possuídos pelos Gregos e Romanos (cf. PL 69, col. 1140). Pessoalmente, Cassiodoro se dedicou aos estudos filosóficos, teológicos e exegéticos sem especial criatividade, mas atento às intuições que reconhecia válidas nos outros.

Ele lia com respeito e devoção sobretudo Jerônimo e Agostinho. Sobre este último afirmou: "Em Agostinho há riqueza que parece impossível encontrar algo que não tenha já sido abundantemente tratado por ele" (cf. PL 70, col. 10). Citando Jerônimo, ao invés, exortava os monges de Vivarium: "Conseguem a palma da vitória, não só aqueles que lutam até ao sangue ou que vivem na virgindade, mas todos aqueles que, com a ajuda de Deus, venceram os vícios do corpo e conservaram a reta fé.

Para que vocês possam, sempre com a ajuda de Deus, vencer mais facilmente as solicitações do mundo permanecendo nele como peregrinos continuamente no caminho dEle, procurem antes de tudo garantir a ajuda salutar sugerida pelo primeiro salmo para meditar dia e noite a lei do Senhor. O inimigo não vai encontrar qualquer espaço para atacá-los se toda a atenção estiver voltada para Cristo"(De Institutione Divinarum Scripturarum, 32: PL 69, col. 1147).

É um alerta que podemos acolher como válido também para nós. Vivemos um momento de encontro de culturas, do perigo da violência que destrói culturas, bem como os esforços necessários para transmitir os grandes valores e ensinar às novas gerações o caminho da reconciliação e da paz. Nós encontramos este caminho se nos voltarmos para Deus que tem a face humana, o Deus que se revelou a nós em Cristo.

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