A família tem sido, ao longo dos tempos, um dos temas preponderantes na análise da sociedade, sobretudo no que diz respeito à questão dos principais fatores que garantem ambientes sociais saudáveis. Neste âmbito, ela é comumente chamada a “célula base” da sociedade.
E todos os estudos referem que é sobre a “saúde” das famílias que se constrói a harmonia social. Também atestam que, quando a instituição familiar entra em “crise”, surgem os mais graves problemas sociais e os maiores atropelos aos direitos humanos e à justiça social. Se esta questão é sempre pertinente, é-o com muito mais ênfase nos nossos dias, em que o conceito familiar tem sido alvo de constantes mudanças, alargamentos e alterações.
Neste contexto, o jornal “O Mensageiro” entrevistou o padre Luís Inácio João, diretor do Secretariado Diocesano da Pastoral Familiar de Leiria-Fátima, em Portugal, e assistente dos Centros de Preparação para o Matrimônio (CPM). Publicamos a seguir, trechos desta entrevista: Ainda faz sentido falar, nos nossos dias, em “família”? Faz sempre sentido falar da família. Se alguma vez deixássemos de falar dela, ela continuaria a falar em nós.
Mas continuamos a falar dela como “célula fundamental” ou a sociedade encontrou já outras formas de se organizar que a possam substituir? A família não é “uma” célula fundamental mas “a” célula fundamental da sociedade. Seria relativização perigosa confundi-la entre outras quando se destaca como primordial.
Logo que a natureza ou o erro humano lhe infligem rude golpe, soa o alarme e torna-se urgente remediar, na medida do possível. Premeditar a sua substituição é atentar gravemente contra a pessoa e, por conseguinte, minar a própria sociedade. […] Falando do presente, quais são em seu entender os principais problemas que as famílias modernas enfrentam? Há hoje grande dificuldade, não só em estabelecer prioridades, mas também em ser fiel ao que se reconhece ser prioritário.
O princípio da fruição instintiva do imediato e efêmero constitui um risco. Os instintos condicionam o homem muito menos do que os outros seres inferiores, mas não o protegem suficientemente. A sua inteligência e vontade são decisivas. Só pensando e decidindo coerentemente, a pessoa humana consegue sobreviver e, significativa coincidência, dignificar-se. Para o homem, nada é um dado acabado, tudo é um projeto.
A família, muito mais que desfecho inevitável de uma atração natural, é dada à consideração e à decisão livre de cada um para a avaliar e nela investir o seu próprio ser. Mas o específico da família é o amor-comunhão que pressupõe a decisão a dois de empreender a vida em doação de ambos e de fazer disso um projeto prioritário.
Entre os principais problemas, teremos que destacar essa descoberta da família como projeto e o reconhecimento da sua prioridade. Num tempo em que esta instituição está tão questionada e tudo parece ser relativizado, talvez seja muito oportuno olhar para trás apontando caminhos para o futuro. A nossa proposta é esta: dar maior atenção e preocupação à família. E por que razão se tornou tão difícil encontrar esse “projeto prioritário”?
A cultura atual arrasta os próprios contenciosos enrolando as grandes questões, em vez de as enfrentar. Entre estas, encontra-se a família que, sendo central, é atirada para a periferia e, sendo incontornável, é adiada muitas vezes através de simulacros e fugas para a frente.
Falei de cultura, incluindo pessoas, instituições e sociedade, todas dependentes da família e nela influentes. Esta onipresença e transversalidade constituem a força e a fraqueza da família, na qual tudo se repercute. Não admira que o seu próprio ser esteja posto em causa numa civilização que deslocou o seu centro da pessoa humana, ser em relação cuja realização implica sempre o outro, para o indivíduo que se ilude com uma auto-realização mais em competição do que em cooperação.
Este individualismo contradiz a capacidade de entrega, a gratuidade, a descoberta e valorização das diferenças, a compreensão dos limites, o perdão e a cooperação num projeto comum, e embala numa concepção redutora da família como bem de consumo irresistível e imprescindível à auto-realização.
Acha que há solução para esse individualismo? Claro que há e, felizmente, há quem a encontre. De qualquer modo, numa sociedade plural e de grande comunicação, nunca pensemos que a solução é simples, que é um exclusivo de alguém, ou que serve apenas a família. […] Porque a família é uma instituição perene, os valores por ela pressupostos também o são.
Não faz sentido falar de regresso ao passado. Capacidade de entrega, gratuidade, compreensão e comunhão são valores de sempre, sem os quais se instala a desordem na família, hoje, tanto como ontem, ou no futuro. O desafio coloca-se em vivê-los em circunstâncias diferentes. […] Sendo certo que há muitas famílias construídas sobre esses valores perenes, para alimentar algum otimismo, podemos encontrar ainda outros sinais positivos neste contexto da evolução social atual?
Essas famílias existem e são as primeiras a advertir que a sociedade lhes coloca sérios obstáculos e nem sempre presta a cooperação e a complementaridade esperadas para conseguirem ser família como entendem e desempenhar bem o papel educativo em relação aos filhos.
Esta advertência é muito positiva e parece crescer. Vai até surgindo alguma mobilização para uma entre-ajuda e uma ação concertada no sentido de inverter a tendência para o alheamento e o desânimo. Na prática, vai encontrando eco o apelo insistente de João Paulo II para que as famílias sejam as primeiras protagonistas de um movimento de resposta às grandes questões da família e vai crescendo a consciência de que a família, como já referi, será sempre um projeto em construção.
Fonte: Ecclesia – Entrevista feita por Luís Miguel Ferraz ao diretor do Secretariado Diocesano da Pastoral Familiar em Leiria-Fátima, Pe. Luís Inácio João.