Padre Antônio Xavier, mestrando em Sagradas Escrituras e sacerdote da Comunidade Canção Nova em missão na Terra Santa, responde a questões sobre os polêmicos livros apócrifos.
Na entrevista, o padre explica o que são, suas origens, como a Igreja lida com estes livros e como os fiéis católicos devem utilizá-los. Além disso, o sacerdote apresenta uma lista completa sobre os atuais livros apócrifos.
noticias.cancaonova.com: O que são os livros apócrifos? A Igreja se utiliza desses livros de alguma forma? Como isso acontece?
Padre Antônio Xavier: A palavra “apócrifo” significa “escrito secreto, reservado, oculto, não lido publicamente”. Quando se fala da Bíblia este tipo de escrito se opõe ao canônico que significa “reto, direito, norma ou ainda lista oficial”. Canônicos são os livros reconhecidos como inspirados e apócrifos são os livros que procuram completar as lacunas dos livros canônicos, ou possuem o mesmo conteúdo dito de forma diferente, ora acrescentando, ora modificando ou ainda contradizendo completamente, não aceitos como inspirados. Existem apócrifos tanto do Antigo Testamento como do Novo Testamento.
A lista dos livros canônicos foi fortemente discutida nos primeiros séculos até que em 382, no Concílio de Roma, o Papa Dâmaso estabelece o cânon (Cfr. Denzinger n.84) e publica a Vulgata. Até este tempo alguns apócrifos eram utilizados como referência a detalhes não tratados nos livros canônicos, mas nunca na liturgia. Alguns apócrifos apresentam os apóstolos como seus autores, mas é uma autoria falsa porque, na verdade, foram escritos bem depois da morte dos apóstolos.
Podemos dizer que os apócrifos, sobretudo do Novo Testamento, deixaram sua marca na arte e até na Tradição da Igreja. Exemplo disso é a sexta estação da via-sacra que fala da Verônica que seca o rosto de Jesus com um pano; os nomes de Joaquim e Ana, pais de Maria; diversas pinturas e mosaicos em igrejas dos primeiros séculos, e etc. Os apócrifos do Antigo Testamento deixaram sua marca, mesmo dentro do Novo Testamento onde na Carta de São Judas é citada uma batalha entre São Miguel e o Diabo pelo corpo de Moisés.
Com a divulgação da lista oficial dos livros inspirados, os apócrifos passaram a ser cada vez mais evitados terminando por desaparecerem durante muitos séculos.
A Igreja utiliza os apócrifos só naquilo que podem ajudar a compreender melhor os livros canônicos, é um uso apenas no estudo, não na liturgia, muito menos catequético. Explico-me: como alguns deles tendem a preencher lacunas dos canônicos, podem representar ao menos uma pista para tentarmos recuperar uma informação antiga, como o trajeto feito pela Sagrada Família quando foram para o Egito, e etc. Mesmo os que são heréticos, erram em dados de fé, podem conter informações históricas que podem ser investigadas posteriormente. Na Teologia, sobretudo bíblica, nós os utilizamos como um testemunho histórico de como um grupo de cristãos de certo lugar interpretava, mesmo que de forma equivocada, certas passagens da Escritura em um momento da história.
noticias.cancaonova.com: Na visão da Igreja, qual é o real problema dos livros apócrifos? Por que a Igreja não os incluiu no cânon da Bíblia?
Padre Antônio Xavier: Cada apócrifo tem um motivo pelo qual foi escrito e um motivo por não ter sido aceito. Este motivo pode ser um problema de fé, distorção de informações históricas e até mesmo falta de utilidade real do livro. Como já dito, todos estes livros foram escritos para fechar uma lacuna ou contestar um outro livro já tido como canônico. Um exemplo de problema doutrinal é o evangelho de Tiago que atribui a Tiago aquilo que Jesus disse a Simão: “Tu és Pedro e sobre esta Pedra construirei minha Igreja”, isso porque Tiago foi bispo de Jerusalém e este evangelho apócrifo foi escrito provavelmente em Jerusalém.
Existem os apócrifos gnósticos onde Jesus é apresentado como um revelador de verdades secretas, ou que contestam a santidade do matrimônio, dizem que somente os homens e as virgens seriam salvas, ou mesmo negam a divindade de Jesus. A Igreja não os incluiu no cânon por não considerá-los isentos de erros de fé, e por mais alguns critérios que colocaremos em seguida.
noticias.cancaonova.com: Os livros apócrifos podem ser lidos pelos católicos? Que tipo de contribuição eles podem trazer aos leitores?
Padre Antônio Xavier: Sim e não. Podem ser lidos sim, mas não como livros inspirados. A Igreja não proíbe a leitura dos apócrifos, mas não os ensina para evitar que as divergências contidas neles possam gerar confusão de fé na cabeça das pessoas. Eu, pessoalmente, desaconselho a leitura de apócrifos sem uma prévia leitura de uma boa crítica sobre eles e uma prévia leitura dos evangelhos canônicos, para evitar que se termine com as ideias mais confusas do que claras. Mas posso dizer também que uma boa leitura crítica dos não heréticos ajuda a compreender o contexto dos primeiros séculos, especialmente os que seguem a mesma linha da natividade e infância de Maria.
noticias.cancaonova.com: Os seguintes livros: Tobias, Judite, 1Macabeus, 2Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc (além de algumas passagens de Ester e Daniel) também chamados de Deuterocanônicos, são considerados pelos protestantes como apócrifos. Por que eles defendem essa ideia?
Padre Antônio Xavier: O nome significa ao pé da letra “segundo canôn” ou “segunda lista”. Deuterocanônicos sãos os livros que fazem parte do canôn católico, que inicialmente não eram aceitos com unanimidade e depois as divergências foram superadas. A questão dos deuterocanonicos é muito extensa e remonta mais de mil anos antes da reforma protestante iniciada por Lutero (século IV x século XVI). Faço um brevíssimo resumo:
Nós herdamos o Antigo Testamento das comunidades judaicas, portanto o cânon na verdade é judaico. Os judeus tiveram ao menos dois cânones diferentes. O mais conhecido é o estabelecido na cidade de Jamniabaseado em 3 critérios: 1) Um livro inspirado por Deus deveria ter sido escrito em hebraico; 2) Na região de Israel; 3) Aténo máximo no tempo de Esdras (458-428 AC). É um cânon bem nacionalista, visto que havia judeus espalhados por todo o mundo conhecido naquele tempo. Por isso excluía os livros citados na pergunta por que não respeitavam um ou mais destes três critérios. Este cânon não foi aceito por todos os judeus, por isso outro cânon mais flexível foi estabelecido em Alexandria no Egito onde os judeus da diáspora usavam a Bíblia traduzida em grego, a famosa versão dos 70 ou Septuaginta, que inclui, sejam os livros em hebraico, sejam aqueles citados na pergunta e mais alguns.
A como a maioria dos cristãos de origem judaica eram judeus da diáspora e também outros povos convertidos que não falavam hebraico, a Bíblia utilizada por eles era a versão grega, mesmo ainda não tendo sido estabelecido de forma oficial o cânon alexandrino. Isso também porque a maioria das citações que o Novo Testamento faz do Antigo se refere a versão grega onde os deuterocanônicos já estavam inseridos. Para encerrar a discussão e esclarecer as dúvidas que já duravam séculos, em 382 é decretado o cânon sobre o cânon alexandrino, mesmo assim excluindo alguns livros.
Lutero tinha muita dificuldade em aceitar estes livros como canônicos, especialmente Macabeus, por questões teológicas. No entanto, quando traduziu a Bíblia para o alemão em 1537, traduziu inclusive os deuterocanonicos, colocando-os em anexo ao fim do volume. Em outras palavras, Lutero considerava os deuterocanonicos como de valor inferior, mas não os retirou da Bíblia como se escuta dizer em nosso tempo. Em 1618, num sínodo calvinista na Holanda, algumas pessoas pediram que estes livros fossem retirados da Bíblia, e mesmo os calvinistas daquele tempo não aceitaram a retirada, mas aceitaram que fossem impressos com letras menores. Infelizmente, em 03/05/1826 a Sociedade Bíblica Inglesa decidiu que os deuterocanônicos deveriam ser retirados da Bíblia protestante, e iniciou-se o processo de impressão sem tais livros, assumindo o cânon judaico de Jamnia e chamando os deuterocanonicos de apócrifos. Entretanto, ainda hoje encontramos edições luteranas que trazem esses livros em anexo.
Disso podemos ver como este problema é mal explicado em nosso tempo. Muitos protestantes acusam o Concílio de Trento (1543-1565) de ter acrescentado os deuterocanonicos a lista dos livros da Escritura, mas não se tem base histórica para tal afirmação, o Concílio apenas confirmou a lista de 382.
noticias.cancaonova.com: Uma das questões acerca dos apócrifos está em torno da inspiração, se é divina ou não. Como é feita a diferenciação entre um livro de inspiração divina e um livro apócrifo?
Padre Antônio Xavier: Nós adotamos os critérios dos padres apostólicos. Os critérios maiores são quatro: 1) O livro deve ter origem apostólica: escrito por um apóstolo ou escrito durante o período de vida dos apóstolos por alguém que tenha convivido com algum. 2) O escrito não pode conter contradições de fé em relação aos demais livros considerados sagrados; 3) O escrito deve ser capaz de conduzir a uma relação especial com Deus, ou seja, por si só ser capaz de gerar, reforçar e amadurecer a fé; 4) Ter sido aceito pela Igreja primitiva em sua liturgia, o uso litúrgico é a forma mais evidente de reconhecimento de autenticidade por aqueles que tiveram contato com as pessoas que tiveram com Jesus ou seus discípulos. Este quarto critério é baseado na ação do Espírito Santo, Aquele que inspira a Escritura, inspira a Igreja a aceitar os autênticos inspirados e recusar os que não o são.
Os apócrifos do Novo Testamento são todos de época bem posterior aos apóstolos. Alguns contêm conteúdo contrário à fé, e por isso foram rejeitados pela Igreja primitiva,outros trazem histórias ou fatos que não são capazes de conduzir a fé genuína, sendo, até certo ponto,testemunha da literatura daquele tempo, mas não considerados livros sagrados.
noticias.cancaonova.com: Pode haver livros com inspiração divina e humana ao mesmo tempo?
Padre Antônio Xavier: Esta é uma outra pergunta que ultrapassa a esfera comum das questões. O termo “inspiração humana” não se aplica a Bíblia. No entanto, ela não é um livro caído do céu, escrito com letras divinas ou mesmo ditado pelo Espírito Santo ao pé do ouvido do hagiógrafo (escritor sagrado). A Bíblia é fruto de um longo processo histórico de amadurecimento da fé, até dizemos que enquanto a fé da comunidade não era madura o suficiente, o Espírito Santo não inspirou a escrita, para dizer que um livro da Sagrada Escritura é sempre inspirado em um ambiente saudável de fé.
Uma boa comparação da Sagrada Escritura é a encarnação de Jesus, onde o Verbo, a Palavra de Deus se faz carne, fala a língua do povo de seu tempo, come o que eles comem, se veste como todos se vestiam e etc. Assim é a Sagrada Escritura, apesar de ser de inspiração divina, o escritor utiliza da língua que possui, seus conhecimentos, sua capacidade literária e etc. No final, o livro também é marcado pelos limites e capacidades do escritor. Por exemplo: o Evangelho de Lucas, que era médico, é belo sobre o ponto de vista literário, mas não preciso sobre as informações geográficas, porque talvez Lucas não conhecesse pessoalmente todas as regiões, o contrário se vê no Evangelho de Marcos que é preciso na geografia, mas apresenta um grego bem mais simples, claramente não era a língua materna do escritor. Entretanto, nada disso interfere no critério de um livro sagrado.
Outro dado interessante é que o autor sagrado não sabia que estava escrevendo um livro sagrado, ele apenas escreveu pela necessidade de evangelizar alguém ou uma comunidade do seu tempo. Vemos as cartas de São Paulo, ele as escreveu para orientar àquelas comunidades. Não tinha em mente escrever um texto sagrado, mas tinha em mente ensinar a verdade sobre Deus, exortar na caridade para o crescimento da fé daquela comunidade. Nessa disposição de Paulo o Espírito Santo o inspira a escrever um texto que ultrapassa a realidade de seu tempo, se transforma em palavra humana de conteúdo divino que ainda hoje é capaz de levar outros homens ao encontro com Deus.
A inspiração divina sobre a Bíblia se distingue da também chamada inspiração divina contida em outros escritos (textos espirituais, catequeses, homilias, e etc). Para estas, o homem de fé se inspira na Bíblia e depois a explica, sem acrescentar e sem contradizer, por meio da arte, seja falada, escrita, construção de ícones e etc. Não se pode dizer que estas não sejam de inspiração divina, mas estão num nível muito diferente da inspiração divina da Bíblia.
Confira a lista dos livros apócrifos:
Apócrifos do Antigo Testamento
A vida de Adão e Eva
Apocalipse de Moisés
Apocalipse de Sidrac
Ascensão de Isaías
Assunção de Moisés
Caverna dos Tesouros
Epístola de Aristéas
Livro dos Jubileus
Martírio de Isaías
Oráculos Sibilinos
Prece de Manassés
Primeiro Livro de Adão e Eva
Primeiro Livro de Enoque
Quarto Livro dos Macabeus
Revelação de Esdras
Salmo 151
Salmos de Salomão
Samuel Apócrifo
Segundo Livro de Adão e Eva
Segundo Livro de Enoque
Segundo Tratado do Grande Seth
Terceiro livro de Enoque
Terceiro Livro dos Macabeus
Testamento de Abraão
Testamento dos Doze Patriarcas
Apócrifos do Novo Testamento
Evangelhos da Infância
Proto-Evangelho de Tiago
Evangelho da Infância de Tomé
Evangelho de Pseudo-Mateus
Evangelho da Infância Siríaco
A História de José, o carpinteiro
A Vida de João Batista
Evangelho Armênio da Infância de Jesus
Evangelhos Judaico-cristãos
Evangelho dos Hebreus
Evangelho dos Nazarenos
Evangelho dos Ebionitas
Versões rivais dos evangelhos canônicos
Evangelho de Marcião
Evangelho de Mani,
Evangelho de Apeles
Evangelho de Bardesanes
Evangelho de Basilides
Evangelho de Cerinto
Evangelho de Tomé
Evangelhos da Paixão
Declaração de José de Arimatéia
Evangelho de Pedro
Atos de Pilatos / Evangelho de Nicodemos
Relato de Pilatos a Cláudio
Cura de Tibério
Descida de Cristo ao Inferno
Evangelho de Bartolomeu
Questões de Bartolomeu
Ressurreição de Jesus Cristo
Sentença de Pôncio Pilatos contra Jesus
Diálogos com Jesus
Apócrifo de Tiago
Livro de Tomé Adversário
Diálogo do Salvador
Evangelho de Judas Iscariotes
Evangelho de Maria Madalena
Evangelho de Filipe
Evangelho Grego dos Egípcios
Evangelho Copta dos Egípcios
Sabedoria de Jesus Cristo
Textos sobre Jesus
Evangelho da Verdade
Apocalipse Gnóstico de Pedro
Apocalipse de Pedro
Pistis Sophia
Segundo tratado do grande Sete
Atos Apócrifo
Atos de André
Atos de André e Matias
Atos de Barnabé
Atos de João
Atos de João o Teólogo
Atos dos mártires
Atos de Paulo e Tecla
Atos de Pedro
Atos de Pedro e André
Atos de Pedro e Paulo
Atos de Pedro e os doze
Atos de Filipe
Atos de Pilatos
Atos de Tadeu
Atos de Tomé
Atos de Xantipe, Polixena e Rebeca
Martírio de André
Martírio de Bartolomeu
Martírio de Mateus
Epístolas
Epístola dos Coríntios a Paulo
Epístola dos Apóstolos
Epístola de Paulo aos Laodicenses
Correspondência entre Paulo e Sêneca
Terceira Epístola aos Coríntios
Correspondência entre Jesus e Abgar, rei de Edessa
Correspondências de Pôncio Pilatos:
Carta de Pôncio Pilatos a Herodes
Carta de Pôncio Pilatos ao Imperador
Apocalipses
Apocalipse da Virgem
Apocalipse de Paulo
Apocalipse de Pedro
Apocalipse de Pseudo-Metódio
Apocalipse de Tomé
Apocalipse de Estevão
Consumação de Tomé
Primeiro Apocalipse de Tiago
Segundo Apocalipse de Tiago
Vingança do Salvador
Visão de Paulo
Destino de Maria
A Descida de Maria
Passagem da Bem-Aventurada Virgem Maria
Julgamento de Pôncio Pilatos
Livro de João, o Teólogo sobre a Assunção da Virgem Maria