Em artigos anteriores já deixamos claro que ninguém pode se furtar ao fascínio das extraordinárias descobertas no campo da biogenética. Ao mesmo tempo deixamos muito claro também que neste, como em outros campos, devemos sempre manter nosso senso crítico. Isto não significa negar o que é anunciado, mas simplesmente ler, pausadamente, e confrontar as descobertas do dia com outros dados de outras ciências. Em outras palavras: não vem ao caso desfazer das pesquisas e descobertas mais recentes no campo da biogenética, mas simplesmente lembrar que só se pode pensar em realização humana quando se têm presentes as múltiplas dimensões da vida pessoal e social.
Uma vez feitas estas observações, vamos sinalizar alguns marcos que antecederam aos estrondosos anúncios deste superfértil mês de janeiro de 2008, onde ocorre uma superprodução de notícias sobre novas, e sempre novas descobertas. Inícios do século passado: começa a busca para a compreensão do que sejam os genes, onde se localizam e quais as respectivas funções.
Meados do século, mais exatamente em 1953, descoberta da estrutura básica do material genético (DNA). Exatamente 20 anos depois: desvenda-se a possibilidade da clonagem, na medida em que se torna possível recortar e deslocar o DNA. Estamos falando do DNA recombinante.
Ano de 1978: nasce o primeiro bebê de proveta, Louise Brown. De 1990-2000: execução do mega projeto Genoma Humano, quando nos deparamos com inúmeras surpresas, umas confirmando, outras substituindo pressuposições anteriores no campo da genética. A partir de 2000 anúncios e desmentidos de nascimentos de seres humanos através da clonagem. Janeiro de 2006: anúncio de partenogênese ( fertilização de óvulo sem espermatozóide) e denúncia de farsa. O centro da “montagem” e seu desmascaramento aconteceu na Coréia do Sul.
Tendo-se presente que alguns jornais diários praticamente reservam meia página para as últimas descobertas relacionadas com a biogenética, certamente muitas outras datas deveriam ser acrescentadas na lista acima. Mas para nosso objetivo, que é o de sabermos fazer uma leitura crítica dos múltiplos anúncios, basta retomarmos a corrente de notícias a partir de finais do ano passado. Em meados de novembro de 2007, aparece o anúncio de que foram bem sucedidas experiências de reprogramação de células adultas, de tal forma que elas adquiram características semelhantes às embrionárias. Com isto, na busca de terapias adequadas para certas doenças de cunho genético, abrir-se-ia a perspectiva de dispensar pesquisar com embriões.
Mas nenhum mês foi mais fértil em novidades do que o presente mês de janeiro de 2008. Ao menos quatro experiências ocuparam grande espaço na mídia. A primeira, no dia 11 de janeiro: poder-se-ia retirar uma célula de embrião, sem eliminá-lo e até mesmo sem lesá-lo. A segunda, no dia 16 de janeiro: devidamente instruída e monitorada, uma macaca sediada na Carolina do Norte, USA, emitindo ondas cerebrais movimenta um robô estacionado em Kioto, no Japão.
A terceira: dia 18 de janeiro: em letras garrafais, vem anunciada a possibilidade de serem produzidos seres híbridos, meio humanos, meio animais. Com este pressuposto no Reino Unido se autorizam experiências para produzir verdadeiras quimeras humanas. Na mesma página do mesmo jornal podem-se ler duas manchetes: Nos USA “ empresa diz ter clonado 2 homens. Embriões teriam sido desenvolvidos a partir de DNA extraído de células da pele”. Este tipo de engenharia denomina-se transferência nuclear de célula somática. Isto significa, esvaziar de seu núcleo uma célula qualquer, preenchendo o vazio com o núcleo de outra célula do mesmo corpo, obtendo-se assim uma fecundação e abrindo-se a possibilidade de desenvolvimento de seres humanos clonados.
Decisivamente, só estes poucos lembretes nos levam a admitirmos que estamos vivendo uma agitação febril, sem precedentes, no campo da biogenética. Decisivamente o célebre livro de Aldous Huxley, “O admirável mundo novo” ( 1937), há muito deixou de ser uma fantasia de caráter futurístico, e passou a ser uma pobre projeção das fantásticas descobertas que vão se sucedendo a cada dia. Tudo isto faz com que alguns se deixem levar por sonhos fantásticos de uma humanidade que conseguiria abolir todas as suas limitações, eventualmente até a morte. Mas tudo isto faz também que em outros cresça o temor de que Mengele, o tristemente célebre médico que conduziu uma série de experiências visando criar uma raça pura, passe a ser considerado com um inocente visionário.
E agora surgem espontaneamente as perguntas: o que pensar e como se situar diante de tudo isto? Seguramente vivemos tempos de aceleração histórica e com reflexos incríveis sobre todas as formas de vida. A engenharia genética deixou de ser fantasia ou projeção para o futuro. Ela já se implantou solidamente no presente, fazendo parte do cotidiano. Ademais, ela deixou de fazer experiências exclusivamente com plantas e animais, para passar decisivamente às experiências com seres humanos. Louise Brown dos 30 anos. Nossa Ana Paula Caldeira vai completar 24 anos… Os bebês de proveta no mundo já seriam mais de 30 mil… E há 15 anos já se podem produzir embriões com características específicas…
Acontece que, com estas últimas experiências acima referidas, os bebês de proveta são fixinha. Agora também já ultrapassamos a era dos embriões sobrantes, chegando à era da partenogênese ( fecundação do óvulo sem o concurso do espermatozóide) e da clonagem humana. E mais ainda, já nos encontramos na era das quimeras, meio humanas, meio animais. Evidentemente isto nos garante que já deixamos para trás a dessacralização da vida, para assumirmos sempre mais como natural sua mecanização e sua mercantilização.
Ao mesmo tempo que isto revela o avanço tecnológico inegável e até mesmo admirável, revela também que os receios no que se refere à crescente desumanização não são nada infundados. Isto significa que nos encontramos num momento histórico onde já não existe outra força capaz de estabelecer limites além do bom senso. É nesta altura que fica cada vez mais clara a importância da ética e da bioética, mas sobretudo a importância de a humanidade se perguntar sempre de novo de onde veio e para onde quer ir. Outras perguntas complementares: o que é progresso e o que é regresso? Qual o sentido da vida pessoal e da sociedade humana?
E para terminar, neste contexto convém lembrar o testemunha de outra Brown, Margareth, também nascida da proveta, com esperma de doador anônimo: “sinto-me infeliz porque nunca conhecerei a metade da minha identidade”. E como se sentirão aqueles que vieram ao mundo milimetricamente programados? Como se sentirão aqueles que nem precisam se olhar no espelho, porque basta olhar para o seu clone?