Entrevista

Doutor em Bioética comenta a Samaritanus bonus: ênfase no cuidado

Carta fala sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida; assessor da Comissão de Bioética da CNBB analisa o documento

Jéssica Marçal
Da Redação

A dimensão do cuidado das pessoas nas fases críticas ou terminais da vida é um dos destaques da carta Samaritanus bonus, divulgada há uma semana pelo Vaticano / Foto: Imagem de truthseeker08 por Pixabay

“Uma atualização da palavra da Igreja sobre as realidades da doença e da morte, com mais ênfase no cuidado das pessoas nessa fase”, assim o doutor em Bioética e mestre em Teologia Moral, padre Otávio Juliano de Almeida, descreve a carta Samaritanus Bonus, divulgada pelo Vaticano na última terça-feira, 22.

O sacerdote é assessor nacional da Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Ele concedeu uma entrevista ao noticias.cancaonova.com comentando sobre este novo documento do Vaticano, que reitera a condenação a todas as formas de eutanásia e suicídio assistido.

Padre Otávio lembra que a eutanásia “é sempre um ato mau”, “sempre será um pecado grave contra a dignidade da pessoa humana”. E esse documento, segundo ele, vem recordar que a Igreja quer estar perto tanto de quem sofre como de quem cuida. “A Carta recorda os valores pastorais da empatia e da compaixão como as melhores terapias humanas para este momento”, explica.

Confira, a seguir, a entrevista:

noticias.cancaonova.com – A Congregação para a Doutrina da Fé publicou no dia 22 de setembro a carta Samaritanus bonus, sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida. O que essa carta representa ao trazer atenção para esse tema?

Padre Otávio Juliano de Almeida / Foto: Arquivo Pessoal

Padre Otávio Juliano de Almeida – Gosto muito de repetir uma afirmação que já ouvi de muitos bispos e santos sacerdotes desde seminarista que diz: ‘A Igreja é perita em humanidade, é especialista no ser humano’. Este importante Dicastério da Santa Sé auxilia todo o corpo eclesial a refletir e iluminar as realidades do Mundo à luz da fiel e atualizada interpretação do Magistério da Igreja baseado na Escritura e na Tradição. Portanto, a Carta vem ao encontro a uma atualização da palavra da Igreja sobre as realidades da doença, da morte, mas agora ainda mais com a ênfase no cuidado das pessoas nessa fase. Pois esta Carta representa um ‘dizer ao pé do ouvido’ de cada cristão e cristã: “olha, a Igreja cuida de cada um desde a concepção até o doloroso momento da morte em quaisquer circunstâncias. Estamos juntos, não se sintam sozinhos nem doentes, nem médicos, profissionais da saúde, familiares, pesquisadores…”

E ela quer estar perto do que sofre, do que cuida, dos que amparam, dos que pesquisam as doenças e os remédios, as terapias e as abordagens médicas diversas. E estamos precisando sempre reafirmar a mesma Verdade do Cristo em cada época com a melhor linguagem e a mais adequada interpretação da razão, com auxílio da Ciência e a escuta laboriosa dos envolvidos.

É a Igreja Mãe e Mestra, como se colocasse ao lado de cada leito: de hospital, de uma residência ou até mesmo em um campo de guerra ou nos mais remotos lugares. Ela como Corpo Místico de Cristo não abandona jamais os seus.

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noticias.cancaonova.com – Em consonância com a questão anterior: a Igreja já tem vários documentos que falam sobre a defesa da vida e até abordam temas como a eutanásia. O que esse documento acrescenta, qual a relevância de trazer esse assunto em um documento novo, na época atual?

Padre Otávio – Uma das novidades – palavra muito cara à nossa época – reside no fato de ser um pronunciamento oficial dentro do Pontificado do Papa Francisco. Desse modo, a linguagem pastoral, tão cara desde quando o então cardeal Jorge Bergoglio apareceu na sacada da Basílica de São Pedro, marca seus escritos e tem se tornado uma marca relevante enquanto busca dialogar com o mundo em uma chave muito próxima das intenções e escritos do Vaticano II.

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Francisco denuncia em muitos outros lugares o que chama de ‘cultura do descarte’. A Carta Samaritanus Bonus aborda, tanto em termos de denúncia, chamada de atenção, quanto de reflexão, ponderação e esclarecimento formativo algumas novas abordagens com relação às terapias de cuidado paliativo e ao uso cada vez mais indiscriminado da tecnologia médica como substituta do cuidado essencialmente humano e amoroso. Diz a carta: “a complexidade dos sistemas sanitários contemporâneos podem reduzir o vínculo de confiança entre médico e paciente a uma relação meramente técnica e contratual” (Introdução). São João Paulo II já denunciava na Evangelium Vitae a cultura de morte como grave sinal da sociedade doente e do individualismo exacerbado e nefasto que se tornou a ideologia dos dias atuais.

Somos apenas máquinas biológicas? Somos descartáveis? Não. Não somos. O ser humano morre dignamente porque vive dignamente

Ainda que também a Igreja veja como bom e positivo o desenvolvimento tecnológico em medicina, biomedicina, farmácia e outras ciências, essas não podem se tornar alimentadoras da solidão dos pacientes, mas, sobretudo ferramentas de suporte para o cuidado: este sim, o essencial para o momento do fim da vida e das experiências de dor e sofrimento.

Outro relevante tema discutido na Carta é o das errôneas concepções de ‘morte digna’ e de ‘qualidade de vida’. Tal como entendidas hoje nos círculos de determinadas legislações e de uma visão opaca e muito mesquinha sobre o ser humano são derivadas de uma antropologia utilitarista ligada às ideias prevalentes de bem estar e gozo da vida física apenas entendida como prazer, consumo, beleza física e saúde ‘atlética’. Ora, o ser humano não possui tantas outras dimensões como a espiritualidade, a capacidade de transcendência e a relacionalidade? Somos apenas máquinas biológicas? Somos descartáveis? Não. Não somos. O ser humano morre dignamente porque vive dignamente. Morrer dignamente não é desligar aparelhos acelerando o processo de morrer em uma autonomia desvinculada da nossa intrínseca vida moral com e para o outro. Qualidade de vida é determinada principalmente pela interioridade moral e pela capacidade de transcendência.

Morrer dignamente não é desligar aparelhos acelerando o processo de morrer em uma autonomia desvinculada da nossa intrínseca vida moral com e para o outro.

noticias.cancaonova.com – O documento reitera a condenação a toda forma de eutanásia ou suicídio assistido. Por que a Igreja é contra essas práticas e o que propõe em oposição a elas, ou seja, a verdadeira forma de lidar com os casos de doentes terminais?

Padre Otávio – A Carta – como novidade em relação aos escritos anteriores – discute e questiona eticamente alguns protocolos médicos e legislações afins como ‘testamentos vitais e diretrizes contra a obstinação terapêutica’. Afirma que foram inicialmente pensados como boas soluções para casos difíceis, onde o paciente doente não possuía condições de sair de uma situação crítica engessada. Com o tempo, esses protocolos se tornaram quase como ‘licenças para matar’. Não havia mais o consentimento familiar e uma ambiguidade nas leis sobre o fim da vida em diversos países e, certamente, até em situações não documentadas ou de estatística confiável, como infelizmente podemos deduzir. A eutanásia – bem compreendida como aceleração da morte ou omissão de terapia de suporte vital essencial – é sempre um ato mau que colabora com o homicídio ou suicídio. A eutanásia se situa no nível das intenções e ao nível dos métodos. Sempre será um pecado grave contra a dignidade da pessoa humana.

A eutanásia sempre será um pecado grave contra a dignidade da pessoa humana.

Pastoralmente falando: em pontos diversos da Carta encontramos o ensinamento mais apropriado para a necessária denúncia contra eutanásia: quem pede para que se retire a vida por um mecanismo eutanásico está, na verdade, pedindo – em tom amargo, doloroso e difícil – que se cuide, que se olhe, que se preste atenção nesta pessoa. É o desespero e a angústia, filhas muito comuns de nosso tempo narcisista e niilista, gritando para o mundo! A afirmação da Carta em tom muito bem elaborado pondera: “A eutanásia e o suicídio assistido são uma derrota para quem os teoriza, para quem os decide e para quem os pratica”.

noticias.cancaonova.com –  A carta traz uma abordagem integral da pessoa humana. Em que medida isso é importante no processo de conscientização sobre os cuidados nessa fase delicada da vida? Nesse sentido, o senhor poderia comentar também a ênfase da figura do Bom Samaritano nesse novo documento?

Padre Otávio – Aceitar a morte como parte integrante da condição humana é uma das maneiras de compreender a integralidade do ser humano e do fenômeno vida. Isso é parte da Criação e tudo está interligado, vai dizer Francisco também na Laudato Sì. Para nos conscientizarmos deste momento delicado da vida do ser humano, da nossa vida, porque também teremos o nossos dias de dor e luta, é preciso afirmar que não somos escravos da nossa materialidade. Somos seres transcendentes, ou seja: damos razão e sensibilidade a tudo o que nos rodeia. E como a irmã morte, diria São Francisco, um dia irá nos visitar, que ela seja compreendida e querida não com a imagem já difundida e nefasta do esqueleto com a foice, mas como uma criança que nos chama a transcender este corpo frágil para uma eternidade que se apresenta tão bela como a vida deve ser aqui vivida – e, certamente, sempre defendida. A dor e a morte não podem ser critérios últimos que medem a dignidade humana, pois essa é digna somente por ser humana.

A dor e a morte não podem ser critérios últimos que medem a dignidade humana, pois essa é digna somente por ser humana.

A Ênfase no Bom Samaritano é de uma beleza ímpar! Aquele homem viu o doente, mas também foi modificado o seu olhar para com ele. Parou. Cuidou. A Carta afirma: “ cada doente necessita não somente de ser escutado, mas de perceber que o próprio interlocutor “sabe” o que significa sentir-se só, abandonado, angustiado…” (parte II.
O Samaritano é um coração que vê. Exercita compaixão. Quem não tem compaixão vê, mas não para. Vê, mas não sente. Vê e vai embora. O Samaritano – imagem robusta e nova para todos nós para com o vulnerável – deixa-se tocar e COMOVER. A vida humana é enxergada como o primeiro bem comum de toda sociedade. Porque ela é condição de fruição de qualquer outro bem. Além do mais, a vida humana reflete e compartilha o Amor Trinitário do Deus vivo. Aqui reside o conceito mais alto de liberdade.

noticias.cancaonova.com – E com relação ao próprio doente que, muitas vezes, parte dele próprio o desejo da eutanásia ou do suicídio assistido. Como lidar com uma situação dessas do ponto de vista do ensinamento católico? E como fica a celebração dos sacramentos para essas pessoas?

Padre Otávio – Como afirmado em uma questão acima o doente pede ajuda. Pede atenção, carinho e respeito na quase totalidade das vezes ao pedir para morrer. Para o ensinamento católico esta é a oportunidade para o CUIDADO. Oferecer a ternura da presença, dedicar-se à escuta atenta, paciente e dedicada. Se possível uma catequese sobre a virtude teologal da Esperança e o valor sagrado do sacrifício da Cruz do Senhor.

A Carta recorda os valores pastorais da empatia e da compaixão como as melhores terapias humanas para este momento. A assistência sacramental-pastoral é um direito de qualquer pessoa religiosa, de acordo com sua crença. A atitude magistral neste momento de dor é favorecer todo e qualquer ato e atitude de benevolência, compreensão, presença e escuta amorosas, derramando o ‘óleo da consolação e o vinho da esperança’ (n.10).

noticias.cancaonova.com – O Cardeal Luis Francisco Ladaria Ferrer destacou que a Samaritanus bonus insiste do começo ao fim nesta dimensão integral do cuidado, destacando o fato de que a dor só é existencialmente suportável se houver uma esperança confiável. Como falar de esperança aos doentes terminais e familiares que o assistem?

Padre Otávio – Falamos de esperança, porque falamos do Cristo. O Ressuscitado venceu a morte eterna e nos abriu as portas da Eternidade. “Vou lhes preparar no céu um bom lugar na Casa paterna tenho muitas moradas. Creiam, pois, em mim; eu vim para salvar e ao céu levar quem aqui aprendeu a amar”: uma letra de música de ir. Míria Kolling, baseada no texto do evangelho de João, que muito marcou minha infância e adolescência ensinada pelo meu saudoso pároco e músico padre Luiz Turkenburg, sacerdote espiritano em Itaúna/MG. Executando e cantando essa canção fui embalado pela Esperança inabalável na ressurreição da carne. Na outra vida, após a morte. É o momento de mais uma vez ouvirmos o mandato de Jesus: “anunciai a Boa Nova a toda Criatura” (Mc 16,15).

A dor e as últimas ‘horas’ de cada pessoa são mais uma oportunidade, ou quem sabe a primeira e última, de dizer: “eu te amo”, “Jesus te ama”.

A dor e as últimas ‘horas’ de cada pessoa são mais uma oportunidade, ou quem sabe a primeira e última, de dizer: “eu te amo”, “Jesus te ama”. Fazer de novo declarações de amor e encharcar de ternura uns aos outros. Oportunidade para enxergar nossa imensa vulnerabilidade. Fraqueza. Pequenez. Mesmo que se diga na arrogância dos tempos de hoje que precisamos sempre sermos fortes e invencíveis. Não somos. E no que somos fortes, somos pelo Senhor Jesus e pelo Espírito Santo que nos consola.

Ah, e como não deixar de dizer: abra seus braços para o colo amoroso da Mãe Maria. Não há palavra mais bela para se dizer quando estamos vivendo derradeiros momentos. Pois Ela está ali, bem do ladinho de cada um de nós!

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