À mídia vaticana

Bartolomeu I sobre a “Fratelli tutti”: abandonemos a indiferença e o cinismo

Entrevista do Patriarca Ecumênico de Constantinopla com a mídia vaticana sobre a encíclica de Francisco: sonhamos o nosso mundo como uma família unida

Vatican News

O Patriarca Bartolomeu I / Foto: REUTERS/Murad Sezer

“Concordamos plenamente com o convite-desafio” do Papa Francisco de “abandonar a indiferença ou mesmo o cinismo que rege nossa vida ecológica, política, econômica e social em geral, como unidades centralizadas em si mesmas ou desinteressadas, e a sonhar o nosso mundo como uma família humana unida”. Com essas palavras, o Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu, em visita a Roma, comenta a encíclica “Fratelli tutti” de Francisco em um encontro com a mídia vaticana.

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Santidade, qual foi sua reação à leitura da encíclica do Papa Francisco “Fratelli tutti”?

Mesmo antes de conhecer a Encíclica Fratelli Tutti, de nosso irmão Papa Francisco, estávamos certos de que seria mais um exemplo de seu interesse inabalável pelo homem, “o amado de Deus”, através da manifestação de solidariedade com todos os “oprimidos e sobrecarregados” e os necessitados, e que conteria propostas concretas para enfrentar os grandes desafios do momento, inspiradas pela fonte inesgotável da tradição cristã, e surgindo de seu coração cheio de amor. Nossas expectativas foram plenamente atendidas após completar a análise dessa interessante Encíclica, que não é simplesmente um compêndio ou resumo de Encíclicas anteriores ou de outros textos do Papa Francisco, mas a coroação e conclusão bem sucedida de toda a doutrina social. Concordamos completamente com o convite-desafio de Sua Santidade de abandonar a indiferença ou mesmo o cinismo que rege nossa vida ecológica, política, econômica e social em geral, como unidades centralizadas em si mesmas ou desinteressadas, e sonhar o nosso mundo como uma família humana unida, na qual somos todos irmãos sem exceção. Com esse espírito, expressamos o desejo e a esperança de que a Encíclica Fratelli tutti se revele uma fonte de inspiração e de diálogo fecundo através de iniciativas decisivas e ações transversais em nível intercristão, inter-religioso e pan-humano.

O primeiro capítulo da encíclica fala das “sombras” que persistem no mundo. Quais são as que mais o preocupam? E que esperança ganhamos do olhar sobre o mundo que nos vem do Evangelho?

Com seu agudo senso humanista, social e espiritual, o Papa Francisco identifica e nomeia as “sombras” no mundo moderno. Falamos de “pecados modernos”, embora gostemos de evidenciar que o pecado original não ocorreu em nosso tempo e em nossa era. Não idealizamos o passado de forma alguma. No entanto, estamos justamente perturbados com o fato de que os modernos desenvolvimentos técnicos e científicos fortaleceram os “híbridos” do homem. As conquistas da ciência não respondem às nossas fundamentais buscas existenciais, nem as eliminaram. Observamos também que o conhecimento científico não penetra nas profundezas da alma humana. O homem sabe disso, mas age como se não o soubesse.

O Papa fala também da disparidade persistente entre os poucos que possuem muito e os muitos que possuem pouco ou nada…

O desenvolvimento econômico não reduziu a disparidade entre ricos e pobres. Ao contrário, priorizou o lucro às custas da proteção dos fracos e contribui para o agravamento dos problemas ambientais. E a política tornou-se a serva da economia. Os direitos humanos e o direito internacional são elaborados e servem a propósitos não relacionados à justiça, liberdade e paz. O problema dos refugiados, o terrorismo, a violência do Estado, a humilhação da dignidade humana, as formas modernas de escravidão e a epidemia da Covid-19 estão agora colocando a política diante de novas responsabilidades e apagando sua lógica pragmática.

Qual é, diante dessa situação, a proposta do cristianismo?

A proposta de vida da Igreja é a grande virada para “só uma coisa é necessária”, e isso é o amor, a abertura para o outro e a cultura da solidariedade das pessoas. Diante do moderno “homem-deus” arrogante, pregamos o “Deus-Homem”. Diante do economicismo, damos lugar à economia ecológica e à atividade econômica baseada na justiça social. À política da “lei do mais forte”, opomo-nos ao princípio do respeito aos direitos inalienáveis dos cidadãos e ao direito internacional. Diante da crise ecológica, somos chamados a respeitar a criação, a simplicidade e a consciência de nossa responsabilidade de proporcionar um ambiente natural intacto para a próxima geração. Nosso esforço para resolver esses problemas é indispensável, mas sabemos que aquele que opera através de nós é o Deus, que é amigo da humanidade.

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Por que o ícone do Bom Samaritano é muito atual nos dias de hoje?

Cristo une em particular o “primeiro e grande mandamento” do amor de Deus com o “segundo semelhante ao primeiro” mandamento do amor ao próximo (Mt. 22,36-40). E acrescenta: “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas”. E João o teólogo é muito claro: “Quem não ama, não conheceu Deus” (Jo 4, 8). A parábola do Bom Samaritano está próxima à parábola do Julgamento (Mt 25, 31-46), é (Lc 10, 25-37) o texto bíblico, que nos revela toda a verdade do mandamento do amor. Nesta parábola, o Sacerdote e o Levita representam a religião, que é fechada em si mesma, e só está interessada em manter a “lei” inalterada, ignorando e negligenciando farisaicamente as “prescrições mais sérias da lei” (Mt. 23, 23), o amor e a ajuda ao próximo. O Bom Samaritano acaba sendo o filantropo estrangeiro próximo àquele que foi espancado e ferido por bandidos. À pergunta inicial do doutor da lei: “Quem é meu próximo?” (Lc. 10, 29), Cristo responde com uma pergunta: “Qual dos três, em tua opinião, foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (Lc. 10, 36). Aqui o homem não tem permissão para fazer perguntas, mas ele é solicitado e chamado a agir. É sempre necessário mostrar o próximo, o irmão, diante e para com o que está longe, o estrangeiro e o inimigo. Deve-se notar que na parábola do Bom Samaritano, de acordo com a pergunta do legista que coloca Cristo à prova “Que farei para herdar a vida eterna?” (Lucas 10, 25), em resposta a ela, o verdadeiro amor ao próximo tem uma clara referência soteriológica. Esta é também a mensagem da perícope do Julgamento.

Em que base podemos todos nos considerar irmãos e por que é importante sentir-se assim para o bem da humanidade?

Os cristãos da Igreja nascente chamavam uns aos outros de “irmãos”. Essa irmandade espiritual e cristocêntrica é mais profunda que o parentesco natural. Para os cristãos, porém, os irmãos e irmãs não são apenas membros da Igreja, mas de todos os povos. A Palavra de Deus assumiu a natureza humana e uniu tudo em si mesma. Assim como todos os seres humanos são criação de Deus, também todos foram incluídos no plano da salvação. O amor do crente não tem fronteiras nem limites. Na verdade, ele abrange toda a criação; é “ardor do coração para toda a criação” (Isaac, o Sírio). O amor pelos irmãos é sempre incomparável. Este não é um sentimento abstrato de simpatia para com a humanidade, que geralmente ignora os outros. A dimensão da comunhão pessoal e da fraternidade distingue o amor cristão e a fraternidade do humanismo abstrato.

O Papa, em sua encíclica, pronuncia uma condenação muito forte da guerra e da pena de morte. Como o senhor comenta esse capítulo da “Fratelli tutti”?

Este tema foi referido pelo Santo e Grande Concílio da Igreja Ortodoxa (Creta, junho de 2016), entre outros, como segue: “A Igreja de Cristo geralmente condena a guerra, que considera resultado do mal e do pecado” (A Missão da Igreja Ortodoxa no mundo moderno, D, 1). Nos lábios de todo cristão deve estar o slogan “Guerra, nunca mais!” E a atitude de uma sociedade em relação à pena de morte é um indicador de sua orientação cultural e da consideração da dignidade humana. O digno sistema da cultura constitucional europeia, da qual um dos pilares fundamentais é a ideia do amor, como expressão de suas crenças cristãs, nos obriga a considerar que todo homem deve ter a possibilidade de arrependimento e melhoramento, mesmo que tenha sido condenado pelo pior crime. É, portanto, uma consequência lógica e moral que mesmo aquele que condena a guerra rejeite a pena de morte.

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