Retiro Espiritual

"O bispo discípulo de Jesus", pregação de Dom Luiz Soares

Na íntegra, primeira palestra de Dom Luiz Soares Vieira, arcebispo de Manaus (AM) proferida durante o retiro espiritual dos bispos em Itaici, na cidade de Indaiatuba (SP), durante a 45ª Assembleia Geral da CNBB.

1. O BISPO MESTRE DA PALAVRA

“Estando em viagem, entrou numa aldeia, e certa mulher, chamada Marta, recebeu-o em casa. Sua irmã, chamada Maria, ficou sentada aos pés do Senhor, escutando-lhe a palavra.”(Lc 10,38-39). Jesus ensinava com desassombro a multidões, ao grupo de seus discípulos, a pessoas. Por isso o tratavam de mestre, rabi. Esse ministério do Senhor continua na Igreja, em toda a Igreja. Entretanto, ele é confiado de modo especial a nós, bispos. É essa a razão por que somos chamados mestres. Relembro um trecho do Diretório para o Ministério dos Bispos (n 119): “Entre os vários ministérios do Bispo sobressai aquele de anunciar, como os apóstolos, a Palavra de Deus (Rom 1,1); proclamando-a com coragem (Rom1,16) e defendendo o povo cristão diante dos erros que o ameaçam (At 20,29; Fl 1,16). O Bispo, em comunhão com o chefe e os membros do Colégio, é mestre autêntico, isto é revestido da autoridade de Cristo, seja ao ensinar individualmente seja ao fazê-lo junto com os outros Bispos, e por isso os fiéis devem aderir ao seu ensinamento com religioso obséquio.” Usando o substantivo e o adjetivo do Diretório, vem a pergunta: como ser mestre autêntico da Palavra? Existe uma única estrada que consiste em ser sempre discípulo autêntico de Jesus. Se não trilharmos esse caminho, perderemos a credibilidade e não passaríamos de sinos que tocam e címbalos que retinem. Nosso munus docendi seria vazio. Tenho medo de que meu serviço episcopal da Palavra mereça o que Jesus atacou nos mestres da Lei de sua época (Mt 23,1-12): 1-falar mas não praticar; 2- colocar fardos pesados em cima dos fiéis; 3- buscar aparecer; 4- ter sede de honras; gostar de ser chamado mestre, pai e guia. O conselho de Paulo a Timóteo tem enorme atualidade:”Por este motivo, eu te exorto a reavivar o dom de Deus que há em ti pela imposição das minhas mãos.”(2Tim 1,6).”Boas palavras essas! À semelhança de Maria, não fica mal o bispo colocar-se diante do Senhor em atitude de discípulo.

2. OUVIR E VER JESUS

Em qualquer aprendizado, a atitude primeira e fundamental do discípulo consiste em ouvir e escutar, enxergar e ver o mestre. São exemplos, dentre muitos outros, a Mãezinha Maria que “conservava isso e meditava tudo em seu coração”(Lc 2,19), “sua mãe , porém, conservava a lembrança de todos estes fatos em seu coração”(Lc 2,51), e Maria de Betânia que “escolheu a melhor parte que não lhe será tirada” (Lc 10,42). “Maria é a figura perenemente significante da escuta da mensagem que provém, quer das palavras quer dos acontecimentos.”(Mario Masini, Belém, pág. 124). Não me é fácil escutar, ouvir, enxergar e ver Jesus. Devido à posição de destaque a mim dada por ser bispo, tenho enormes as tentações de assumir aspectos doutorais. Sto. Agostinho teve o mesmo problema ao confessar no final de sua vida que “tinha falado muito e ouvido pouco.”

3. OUVIR E VER O JESUS HISTÓRICO

Na exortação apostólica “Sacramentum Caritatis”, o Papa Bento XVI diz:”Hoje torna-se necessário redescobrir que Jesus Cristo não é uma simples convicção privada ou uma doutrina abstrata, mas uma pessoa real cuja inserção na história é capaz de renovar a vida de todos.”(n. 77). Jesus é um fato, um acontecimento, alguém que realmente viveu em determinada época da história humana. Nasceu, foi criança, adolescente, jovem, adulto, morreu e ressuscitou. Portanto, ser humano, do sexo masculino, judeu, filho de Belém, cidadão de Nazaré,compartilhou das alegrias, tristezas, esperanças e angústias de seu tempo. Cremos que é Filho de Deus, Deus mesmo encarnado, feito igual a nós. Morreu para nos libertar da Lei e do pecado bem como para fazer-nos viver a vida divina. “Ele tinha condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas, esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o sobreexaltou grandemente e o agraciou com o nome que é sobre todo nome.”(Fil 2,6-9). Ser seu discípulo exige que o escutemos, ouçamos, enxerguemos e vejamos nas Sagradas Escrituras. Reduzir Jesus a emoção ou algo abstrato é acabar com Ele. Jesus é pessoa e proposta, Deus e homem, plenamente Deus e plenamente homem. Não se trata somente de estudar sua trajetória histórica, mas de descobrí-lo vivo e ressuscitado, atual e atuante. É a Palavra que fala pelas palavras dos textos bíblicos. Aqui me questiono a mim mesmo sobre minha atitude frente à Bíblia, que toda ela se compreende à luz da Páscoa do Senhor.

4. OUVIR E VER O CRISTO DOS ENCONTROS MÍSTICOS

Jesus nos deixou a certeza de que “eu estarei convosco sempre, até o fim do mundo.”(Mt 28,20). Está na Eucaristia, na Palavra, nos sacramentos todos. Podemos ouví-lo e vê-lo na oração. O bispo tem que ser um místico. O ativismo pode ser tentação forte para quem se defronta com desafios gigantescos. Diante de problemas ou situações difíceis é necessário ouvir e ver Jesus. Ouvir seus conselhos e ver o que ele faria. É um encontro em que ele nos revela o Pai, e o Espírito Santo nos dá a experiência de sermos filhos no Filho. Neste sentido, o capítulo 14 de João sempre me impressionou. Os versículos 15-17 falam da experiência do Espírito Santo que nos é dado pelo Pai a pedido de Jesus e que permanece em nós. Os versículos 18-21 nos dizem que nossa experiência de Jesus consiste em ele estar no Pai, em nós estarmos nele e ele estar em nós. Os versículos 21-25 expressam nossa experiência com o Pai que nos ama e que com Jesus mora em nós. Jesus abre-nos à dimensão trinitária de Deus. O místico não se fecha num intimismo narcisista. Os grandes místicos foram reformadores da Igreja e transformadores da sociedade. Paulo, Francisco de Assis, João da Cruz, Teresa d’Ávila estão aí para o demonstrar. Nosso modo de celebrar a Missa revela o tamanho de nossa fé na presença real e sacramental do Senhor na Eucaristia. O cristão é alguém que vê além das aparências. Vê o pão e o vinho e crê serem eles o Senhor. Não dá para sair da celebração eucarística do mesmo tamanho nem menor do que em seu início. Quantas vezes estamos ausentes embora estejamos presentes fisicamente! Colocar a alma no que fazemos significa viver o Mistério. Pior ainda quando escandalizamos os fiéis com demonstrações de irritação em plena Missa. Diga-se o mesmo para os demais sacramentos. A autenticidade de nossa fé no que celebramos está nas consequências que traz para nosso ministério episcopal.

5. OUVIR E VER O CRISTO NA IGREJA

“A Igreja é sacramento de salvação enquanto, por meio de sua visibilidade, Cristo está presente entre os homens e continua a sua missão, dando aos fiéis o seu Espírito Santo.”( Diretório, n 6). Se a vemos como Corpo Místico, Jesus é sua cabeça. Se a vemos como Povo de Deus, Ele é o novo Moisés que caminha à frente. Se a vemos como Comunhão, o Espírito dele é que lhe concede a unidade. Aqui se coloca nossa atitude permanente de ouvir e ver Jesus na união com toda a Igreja Católica através do Papa, na abertura para todas as Igrejas através da solicitude por elas e na colegialidade. (Diretório,22). Jesus nos fala na e pela Igreja. A união afetiva e efetiva do bispo com o Papa, e do bispo com os demais bispos é a única resposta que o bispo-discípulo pode e deve dar ao Senhor. O estudo dos documentos papais, da CNBB, de outras expressões de colegialidade precisa fazer parte de nossa rotina. A participação nas assembléias da CNBB nacional e regional, o alinhamento das diretrizes diocesanas às diretrizes papais e da CNBB são ouvir e ver Jesus. Mas, a Igreja é muito mais que o Papa e os Bispos. Ela é acima de tudo os fiéis, dos quais somos simples servidores. Não é fácil para mim descer da cátedra de mestre da Palavra para ouvir o que Deus diz através dos leigos e leigas, de religiosos e religiosas, de diáconos e presbíteros. E como Deus fala através deles! São palavras, exemplos de vida, heroísmos. A fé das pessoas simples e despretensiosas diz com frequência muito mais que nossos conhecimentos teológicos ou filosóficos.

6. OUVIR E VER JESUS NOS OUTROS, ESPECIALMENTE NOS EXCLUÍDOS

Gostei da encíclica “Deus caritas est”porque ela relembra de maneira simples ensinamentos bíblicos que são fundamentais na vida cristã, seja ela pessoal, comunitária, eclesial ou social. Não podemos ser semelhantes ao rico avarento Lc 16,19-31) que sofria no fogo eterno porque ignorara levianamente o pobre Lázaro que sofria doença e fome. O bom samaritano (Lc 10,25-37) alerta que “qualquer um, que necessite de mim e eu possa ajudá-lo, é meu próximo.” A parábola do juízo final diz que o critério do julgamento divino será o amor aos necessitados. (Mt 25,31-46). Jesus está presente em cada pessoa, de tal modo que “se alguém disser:”Eu amo a Deus”, mas odiar a seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama a seu irmão ao qual vê, como pode amar a Deus que não vê?”( 1 Jo 4,20). O bispo-discípulo de Jesus sabe que precisa da humildade e da simplicidade para descobrí-lo presente nas crianças, nos adolescentes, nos jovens, nos idosos, nos sadios, nos doentes, nos homens, mulheres e, por que não, nos homossexuais, e especialmente nos excluídos. Sabe que o Senhor fala pelos ignorantes e desprezados. Está atento aos sinais dos tempos. Despoja-se da vaidade de honrarias e do orgulho de seus conhecimentos para abrir os ouvidos ao sussurro do Senhor que fala e arregalar os olhos a suas aparições nem sempre muito nítidas.

7. CONCLUINDO

Somos mestres da Palavra mas não senhores ou donos da Palavra. Servimos à Palavra e sabemos que prestaremos contas desse múnus inerente a nosso episcopado. Para realizá-lo fielmente, nunca poderemos deixar de ser discípulos de Jesus. A Conferência de Aparecida exige de nós que nos convertamos como condição para ajudar nossos presbíteros, diáconos, religiosos, religiosas, consagrados, consagradas, leigos, leigas, enfim, toda a Igreja a ser discípula do Senhor.

8. TEXTOS PARA ORAR

Lucas 10,38-42
Mateus 23,1-12
Lucas 16,19-31
Lucas 10,25-37
Mateus 25,31-46

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