Visita do Papa a Geórgia e Azerbaijão estreita laços, diz historiador

Mestre em História analisa cenário dos países que recebem visita do Papa que, segundo ele, é itinerante de paz

Jéssica Marçal
Da Redação 

O Papa Francisco inicia nesta sexta-feira, 30, a 16ª viagem internacional de seu pontificado, desta vez à Geórgia e ao Azerbaijão. Com isso, ele conclui o ciclo de visita à região do Cáucaso, iniciada com a viagem à Armênia em junho desse ano.

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Por que visitar esses países, geograficamente localizados na “periferia” da Europa? Conversamos sobre esse assunto com o filósofo e historiador Mário Dias, que faz um panorama sobre os dois países, atualizando os reflexos dos conflitos que marcaram e ainda hoje marcam a região.

Para Mário, que também é doutor em Memória Social e mestre em História, o Papa Francisco é um itinerante da paz e essa visita à região estreita laços. Confira a entrevista:

O Papa Francisco, em suas viagens, tem priorizado países mais periféricos. Geórgia e Azerbaijão ficam na Europa Oriental, distante dos grandes centros como Itália, França. Podemos dizer que essa região do Cáucaso de fato é a “periferia” da Europa? O que caracteriza como tal?

Historiador Mário Dias / Foto; Assessoria Unisal Lorena

Historiador Mário Dias / Foto; Assessoria Unisal Lorena

Mário Dias – Prefiro não “rotulá-los” como países periféricos, pois podem parecer que estes países não exercem uma influência sobre os considerados “centros”, mas uma ameaça à sobrevivência dos mesmos. A expressão de “periferia da Europa” se deve ao fato de que, geograficamente, eles enfrentam o dilema natural de ter várias fronteiras e com isso se constituir como países de passagem o que leva à formação de um agrupamento étnico diverso, dificultando, muitas vezes, a constituição de uma identidade “nacional”. Outro fato importante a se considerar é o fato de que a partir de 2006 há uma tentativa de organizar tratados diplomáticos envolvendo o “corredor” para Asia, países como Geórgia, Ucrânia, Azerbaijão e Moldávia (GUAM). Esta região é estratégica se levarmos em conta que parte do abastecimento de gás natural e, portanto de energia tanto para a Europa quanto para Rússia passam por estes países. O oleoduto construído na Região do Cáucaso do Sul (Baku-Tbilisi-Ceihan) foi considerado uma vitória para os países ocidentais, pois conseguiram penetrar no espaço até então considerado soviético. Alguns estudiosos deixam de levar em conta a importância econômica que estes países em questão (Geórgia e Azerbaijão) representam e se pautam apenas nas condições geográficas fronteiriças com outros países, em sua maioria dominada pela influência da Rússia. Os constantes conflitos pela autossuficiência olho1e domínio na região levam, muitas vezes, a um descompasso entre os propósitos econômicos e a vida da população em geral. A visita do Papa a esta região é, sem dúvida, a marca principal de seu pontificado, pois o desejo de controlar a natureza da guerra, própria da condição humana quando atiçada pelos interesses de domínio histórico sobre as regiões mais impotentes belicamente, e propor um projeto de diálogo e, consequentemente, de paz, quebra qualquer lógica capitalista que se nutre da pobreza e da miséria do povo. A “periferia” se torna estrategicamente uma ação contra os chamados centros do poder que nem de perto estão nas fronteiras entre o bem da população e a manipulação econômica.

2- Estando na ponta da Europa Oriental, Geórgia e Azerbaijão estão bem próximos do continente asiático. Isso exerce algum tipo de influência em termos políticos, com relação ao restante da Europa?

Mário – Com certeza há interesses em todos os campos políticos e econômicos para a “tomada do controle” destes países. Há uma certa resistência, por exemplo, da Turquia em relação à visita do Papa, pois tenderia a acender novamente o debate sobre os massacres ocorridos naquela região. A tentativa de aproximação destes países à OTAN, por exemplo, desagradou tanto a Rússia como a Ásia, pois significaria, novamente uma aproximação mais direta aos EUA que historicamente já exercem um papel de influência no Oriente e nos demais países do Oriente Médio. A conhecida “Revolução Rosa” (2003), por exemplo, olho2representou à intervenção norte-americana em auxílio à posse do presidente georgiano Mikahil Saakashvili. Isso foi considerado uma intervenção tanto do ponto de vista dos soviéticos quanto dos demais países fronteiriços à Georgia. Fortalecidos por tal movimento, a Geórgia se recusa a fazer parte da CEI (Comunidade dos Estados Independentes) e se alia aos países bálticos. Podemos considerar que esta região que envolve tanto a Geórgia, Armênia quanto o Azerbaijão são “zonas de conflitos” permanentes, em busca da independência plena e, de alguma maneira, centro de atenções da Europa e, principalmente dos vizinhos asiáticos que lutam por igual objetivo e ainda se veem “atrelados” à Rússia ou às constantes intervenções militares dos americanos, que se autodenominam “guardiães da democracia”.

Logo da viagem papal à Geórgia e ao Azerbaijão / Reprodução Vaticano

Logo da viagem papal à Geórgia e ao Azerbaijão / Reprodução Vaticano

3- A Geórgia tem um histórico de conflitos: a guerra civil no início dos anos 90 (conflitos inter-étnicos e intra-nacionais) e em 2008 a chamada guerra Russo-Georgiana, ou Guerra dos Cinco dias. São guerras recentes, digamos assim. Ainda hoje existem resquícios desses conflitos no país? Como foi o processo de recuperação da Geórgia?

Mário – Como já apontando anteriormente, a historiografia registra uma série de conflitos nessa região em busca de autossuficiência política e econômica. A herança soviética e as inúmeras tentativas de submissão destes países à política de Moscou fez gerar conflitos e guerras tais como as “Revolução das Rosas” em 2003 na Geórgia, a “Revolução da Laranja” em 2004, na Ucrânia, a “Revolução das Tulipas” em 2005 em Quirguistão. O que mais chama a atenção dos cientistas políticos e historiadores é o fato da Georgia em 2008 sofrer uma forte repressão do governo russo. A história registra o famoso “cinco dias” de truculência militar a uma Geórgia fragilizada e sem o prometido apoio ocidental, principalmente da OTAN. A Federação Russa aproveita o momento de instabilidade econômica e política para estabelecer posição contrária ao projeto de influência da OTAN no leste europeu. Não se pode deixar de lado este fato histórico e pensar que os tratados assinados apaziguaram os ânimos de todos os envolvidos no conflito. A instabilidade política gerada após este movimento faz refletir nas condições de vida da população e na busca por um processo de reorganização das bases fundantes de um estado independente: educação, cultura e economia. Há ainda grupos separatistas que impendem o progresso e a construção de uma identidade própria, basicamente por conta de grupos étnicos distintos e ainda saudosos de uma ligação mais próxima com a Rússia. Vários acordos foram firmados no sentido de construir uma “nova” Geórgia, mas ainda fragilizados pelos acontecimentos de 2008, há uma certa desconfiança se o atual governo conseguirá, de fato, construir um país independente capaz de se unir aos projetos de “livre comércio” e mesmo à participação na União Europeia.

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4- O que move a economia da Geórgia? E do Azerbaijão?

Mário – A Geórgia, após sua independência datada de 1991, se viu diante de duas potências (EUA e Rússia) na tentativa de se levantar economicamente. A sua economia, antes da independência, estava toda voltada à intervenção russa, as fontes de riqueza estavam todas elas concentradas nas mãos do governo, o que impedia a entrada de iniciativas privadas. A sua condição geográfica pouco possibilita tal expansão. Os conflitos e as lutas separativas atravancam o progresso e inibi o investimento externo. Um país considerado de baixa renda e possibilidades de crescimento, com uma população de aproximadamente 5 milhões de habitantes. A sua economia se pauta, principalmente, nos impostos pagos pelos governos que se beneficiam do oleoduto que transita pelo território da Geórgia. A crise econômica global atinge diretamente estes países de pouca renda e capital de giro, facilitando, de certa forma, a “ajuda” externa seja ela vinda da Rússia, da Turquia ou do próprio Estados Unidos. Esta forma de intervenção indireta, certamente compromete a soberania nacional da Geórgia.

Diferentemente da Geórgia, o Azerbaijão é considerado um dos países mais ricos desta região, principalmente por conta do Petróleo e do gás natural. Pensar que a empregabilidade de 12% da população está concentrada na extração e nos derivados do Petróleo incentiva a entrada de investidores estrangeiros. A principal empresa State Oil Company of the Azerbaijan Republic (SOCAR) possui um contrato assinado por 30 anos com os demais produtores de petróleo e gás natural, o que renderá cerca de 60 milhões de dólares no Azerbaijão. Para não ficar dependente do Petróleo, o governo procurou diversificar suas atividades econômicas, tanto no que se refere ao mercado imobiliário, quanto principalmente nos investimentos agrícolas, na qual se concentram a maior parte de sua mão-de-obra. Em se tratando de um país estratégico para os interesses do Ocidente, o Azerbaijão recebe orientação e monitoramento do Banco Mundial e de outros acordos diplomáticos que garantem a estabilidade e o controle econômico e político na região.

5- As diferenças religiosas costumam ser motivo de conflito na região do Cáucaso?

Mário – Muitas vezes confundimos diferenças religiosas com questões econômicas e disputas pelo poder em algumas regiões e países. Esta região é conhecida pelo seu fator econômico e, ao mesmo tempo, estratégico e que “vale” uma disputa de domínio. De acordo com Valérie Gauriat “os muçulmanos azeris e os armênios cristãos têm coexistido durante séculos na região”(16/09/2016). Isso valida a afirmação de que a disputa em jogo é pelo poder que pode afetar diretamente os interesses da Europa e do mundo. A Rússia sempre teve seus olhares voltados a esta região, a Turquia deseja o controle energético do Cáucaso, aliado naturalmente aos interesses próprios da Geórgia, dos grupos separatistas e do Irã. A religião pode ser considerada, dentro deste cenário, apenas um pretexto do que realmente ocorre nesta região.

6- O Papa visita os países como líder religioso, acima de tudo, mas também como chefe de Estado. Como você entende essa visita do Papa Francisco a esses dois países, quão importante acredita que seja?

Mário – Esta questão é interessante até mesmo para esclarecer aos leitores de que o Papa é um chefe de estado e também um líder religioso, se quisermos colocar nesta ordem hierárquica de poder. Muitas pessoas, não católicos, acabam achando um exagero da imprensa e dos governos destacarem a visita do Papa aos países e todo o aparato olho 3necessário de segurança. É preciso reforçar que ele é um chefe de estado e, por esta razão, há necessidade real de se reforçar a segurança e os laços diplomáticos. Voltando à questão central, acredito cada vez mais que o Papa Francisco é um itinerante da paz, alguém preocupado efetivamente com a busca pelo diálogo como uma missão específica de estabelecer laços inter-religiosos e denunciar a violência do mundo por conta específica do “vazio de esperança” que muitas vezes nutre o cenário contemporâneo. Não há como negar que esta visita pontifícia estreita laços e, ao mesmo tempo, dá mostra significativa de que não estamos no mundo para usufruir das riquezas que acabam por enaltecer o poder e o individualismo. A justiça social, a paz, a tolerância, o combate à desigualdade, à miséria e à fome, não se resolvem pelas grandes teorias, mas pela ação que se permite unir os homens a um único projeto pela dignidade da vida. Tenho a impressão que este é o ensinamento e o legado que o Papa nos deixa em cada visita. Precisamos restabelecer o diálogo inaugural de qualquer ação em detrimento de uma cultura do ódio e da intolerância.

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